Um governo de todos os israelenses – Operação Guardião das Muralhas

Samuel Feldberg – Especial para a TJ

Desde o último conflito de grande intensidade entre Israel e o Hamas, em 2014, houve anos de relativa calma e outros de choques esporádicos, com lançamentos de foguetes e balões incendiários, seguidos de retaliações israelenses. Mas Israel esteve engajada na chamada “campanha entre guerras”, voltada às ameaças do Irã e do Hizballah, dando ao Hamas e à Jihad Islâmica uma relativa liberdade, alimentada pelos fundos oriundos do Qatar. Obviamente os recursos não foram investidos em escolas ou infraestrutura civil, mas sim na construção de um arsenal agora utilizado pelos terroristas.

A inteligência israelense assume que tenham sido estocados mais de 20 mil artefatos que, com exceção de parte dos mísseis e foguetes, foram destruídos incluindo pequenos submarinos, drones, assim como fábricas e plataformas de lançamento. Mas não deve ser pequeno o arsenal remanescente em poder dos terroristas.

Entre os objetivos atingidos pela Força Aérea Israelense, está a destruição do sistema de túneis construído pelo Hamas, que permitia o deslocamento subterrâneo de seus membros sem que fossem detectados; mas não só os tuneis foram destruídos: estima-se que muitos dos combatentes foram mortos, quando os túneis desmoronaram sobre suas cabeças.

Os lançadores múltiplos de foguetes são um novo desafio tecnológico com o qual o Domo de Ferro terá que “aprender” a lidar, enquanto outro resultado positivo foi a eliminação de vários dos líderes operacionais das duas organizações, alguns deles em suas casas, uma lógica antes utilizada contra o Hizballah em Beirute.

O confronto obrigou Israel a interromper por mais de uma semana o fornecimento de gás de sua plataforma marítima, enquanto eliminavam a capacidade operativa do Hamas e, em uma situação quase inédita, o aeroporto internacional Ben Gurion foi fechado, levando ao cancelamento de inúmeros voos com destino a Israel. Diversas companhias só retomaram os voos após o início da vigência do cessar-fogo.

Israel teve que lidar com um conflito em três frentes: a militar contra o Hamas, a frente interna de distúrbios civis, principalmente nas cidades mistas, e uma retomada de ataques na Cisjordânia, contra civis e tropas israelenses.

Mas, mais uma vez, como ao longo dos últimos anos, um cessar fogo não é uma solução e sim um paliativo. A única alternativa seria a entrada de um grande contingente de tropas por terra com o objetivo de eliminar a liderança e a infraestrutura do Hamas. Seria um retorno aos métodos utilizados na Cisjordânia durante a Segunda Intifada e implicam no risco de deixar um vácuo de poder na Faixa de Gaza ou exigir uma prolongada presença militar israelense administrando a população civil.

Ao contrário da dissuasão mútua estabelecida com o Hizballah após o confronto de 2006, a Faixa de Gaza não tem ativos que possam ser considerados “reféns” no caso de uma retaliação. No Líbano, ficou claro que outra provocação do Hizballah levaria à destruição da infraestrutura do país e, portanto, mantem-se desde então um equilíbrio de terror. Na Faixa de Gaza não existe infraestrutura civil que possa onerar o Hamas e talvez seja esse o elemento que falta para instaurar uma trégua de longo prazo. Se a população palestina tiver algo a perder, indústrias, um porto, um sistema funcional de abastecimento de água, eletricidade e tratamento de esgoto, talvez venha a opor-se às provocações do Hamas. Dezesseis anos após a retirada unilateral israelense, uma nova abordagem seria bem-vinda, sempre e quando haja supervisão dos recursos destinados à construção de uma infraestrutura civil.

Façam suas apostas – os aspectos políticos do confronto

Apesar de sua nítida derrota militar, o Hamas conseguiu desviar as atenções para Jerusalém e afirmar-se como o defensor dos locais islâmicos sagrados aos olhos dos muçulmanos de todo o mundo. Agora cabe a Israel avaliar como restabelecer o status quo de controle israelense sobre uma Jerusalém unificada, da qual o país não pretende abrir mão. A decisão do Hamas por iniciar o conflito provavelmente foi influenciada pelo cancelamento das eleições legislativas palestinas, comandadas pelo presidente Mahmoud Abbas. No futuro, as chances de vitória do Hamas serão certamente muito maiores. O Hamas tem uma clara vantagem sobre Israel: enquanto o país se engaja com todos os recursos disponíveis para evitar vítimas entre seus civis, os terroristas do Hamas não só se protegem com escudos humanos como também se beneficiam da disparidade no número de civis mortos de ambos os lados.

Do lado israelense ocorreu uma reviravolta. Às vésperas do conflito, Yair Lapid, detentor do mandato para formar o governo, havia declarado que “em alguns dias poderemos formar um novo governo funcional, baseado em amplos acordos e no bem comum”. A aliança, que teria incluído o partido árabe Ra’am, desintegrou-se durante as hostilidades, principalmente devido aos confrontos internos entre cidadãos israelenses árabes e judeus.

Talvez esta tenha sido a principal consequência desta nova etapa de violência. Desde o ano 2000 não ocorriam conflitos desta magnitude, envolvendo palestinos em Israel, e a percepção era de que havia uma progressiva integração árabe na sociedade israelense.

A plataforma eleitoral do partido Ra’am pregava justamente a defesa dos interesses árabes através de sua atuação no parlamento.
Após o fim de mais uma etapa deste conflito centenário, Lapid retomou as negociações, e conseguiu formar um governo, evitando outra rodada de eleições e o possível sucesso de Netanyahu. E a batalha já começou, com acusações de ambos os lados sobre as motivações e a conduta da operação contra o Hamas, assim como críticas ao governo por ter aceitado a trégua sem que fossem devolvidos a Israel os dois cidadãos israelenses, assim como os corpos de dois soldados em poder da organização terrorista.

Agora que finalmente foi formado um novo governo, talvez a Autoridade Palestina reconheça a necessidade de retomar as negociações, esvaziando assim o papel do Hamas como único defensor dos interesses palestinos.

Mas a questão palestina não é a única, e talvez nem a principal a ser enfrentada por este novo governo. Sua diversidade, que inclui na ala direita os nacionalistas religiosos de Bennett e os dissidentes do Likud liderados por Saar e na extrema esquerda o Meretz, tem que acomodar também, pela primeira vez desde o governo de Rabin, um partido árabe. E justamente aquele baseado no fundamentalismo islâmico da Irmandade Muçulmana. Se por um lado a ideologia pode representar uma desvantagem, por outro, o sucesso desta coalizão poderia levar à incorporação dos outros parlamentares árabes, considerados mais moderados.

Esquerda e direita se enfrentarão quando tiverem que decidir sobre orçamentos e infraestrutura para a Área C da Cisjordânia e, neste curto prazo de vigência do novo governo, já surgiram tensões relacionadas às demandas dos ortodoxos que, após décadas, estão alijados do governo e dos controles de seus recursos.

Não faltam desafios, mas o cansaço da população com o processo eleitoral e com as limitações impostas pela pandemia talvez seja suficiente para dar uma sobrevida a este governo tão improvável.

Façam suas apostas.

*Samuel Feldberg é doutor em Ciência Política pela USP, professor de Relações Internacionais e Pesquisador do Centro Moshe Dayan da Universidade de Tel Aviv. É membro do Conselho Acadêmico do StandWithUs Brasil.

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