Biografia coletiva de judeus e cristãos-novos, livro arrancado da terra arrebenta corações

Caio Blinder – Especial para a TJ

O livro de Lira Neto arrebenta os corações. Afinal, como resistir a uma obra (Companhia das Letras, 2021) que nos torna passageiros/aventureiros em uma épica travessia, a começar pelo título? Arrancados da Terra: Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York.

Arrancados da Terra é expressão bíblica, então vamos ressalvar que existe uma liberdade poética no título. O cearense Lira Neto, biógrafo do Padre Cícero, Castelo Branco e Getúlio Vargas, desta vez trabalhou em uma biografia coletiva, de cristãos-novos e judeus. Sim, perseguidos pela Inquisição na Espanha e Portugal e abrigados na Holanda, eles migraram para o Pernambuco sob o domínio holandês no século 17 em busca da Jerusalém dos Trópicos.

Assim, antes de mais nada, eles não ocuparam o Brasil, mas participaram da ocupação de uma parte da colônia portuguesa. A partir daí, existe o componente da epopeia que exerce um fascínio global. Com a restauração portuguesa, muitos regressaram para a Holanda e outros se embrenharam pelo sertão (e temos as lendárias histórias sobre rituais judaicos mantidos até hoje no Nordeste), mas um punhado de 23 judeus rumou num navio para o Atlântico Norte e em 1654 ele teria atracado na ilha de Manhattan.

Por que o verbo no condicional? Lá no título espetacular, há a afirmação de que estes judeus “fizeram Nova York”. Claro que teria sido correto uma frase do estilo “fizeram em Nova York”. Pois, é manjada lenda urbana que os judeus fundaram Nova York ou, para ser mais preciso, Nova Amsterdã (nome da cidade holandesa antes de ser tomada pelos ingleses).

O fantástico escritor Lira Neto (uma das minhas metas agora é ler as suas outras biografias) obviamente não embarca no sensacionalismo ou na cascata sequer sobre os aspectos mais comuns desta travessia iniciada no Recife e que culmina em Nova Amsterdã, que na época já era uma cidade com mil almas

Ele não bate o martelo sobre os 23 judeus da epopeia que precisa dar em minissérie ou em filme. Ele prefere ponderar com o leitor: “À luz da documentação que se conhece, essas dúvidas permanecem irrespondíveis. Esse componente de mistério torna o assunto ainda mais saboroso”.

Lira Neto reconhece que “existe uma imprecisão histórica quando se afirma que esses judeus saídos do Recife teriam fundado Nova York. Quando eles chegam à ilha de Manhattan já havia ali um empreendimento colonial em curso, que era a Nova Amsterdã. Eles se uniram a um processo de colonização já preexistente. Isso é um ponto”.

Esta parte é óbvia, mas no pós-escrito do livro e em várias entrevistas ele diz sobre os 23 judeus: “É impossível cravar como verdade absoluta como querem alguns e também impossível descartar o episódio como se fosse não verdadeiro, porque entre um extremo e outro há uma série de questões que precisam ser discutidas e refletidas. A gente tem que entender que os mitos, as mitologias de origem, não são apenas fabulações, invenções, ilusões, ou, em suma, mentiras. São também tradições, são modelos de interpretação, formas de compreensão da realidade. É preciso não descartar o mito pura e simplesmente, mas procurar compreender as origens, seus significados, as motivações dessa mitologia”.

Macro e micro-histórias

Tudo ressalvado, vamos ressaltar que de fato esta é uma obra que arrebenta os corações. Temos uma biografia coletiva com a macro-história e as micro-histórias, com personagens anônimos que são os fios do novelo. No começo, de forma arrebatadoramente sofrida, existe o foco em Gaspar Rodrigues Nunes, dono de uma pequena loja de pregos em Lisboa, perseguido e torturado (e como ele foi torturado, nossa mãe!) pela Inquisição, sua esposa, que delata o próprio marido, e o filho Menasseh, refugiado, criado e crescido judaicamente na Holanda.

Os fios condutores são a perseguição, o ódio e o preconceito contra os judeus e a resilência dos perseguidos. Os calvinistas holandeses eram bem melhores do que os clérigos católicos da Inquisição, mas devagar para não confundi-los com iluministas.

Há incríveis ironias nas histórias de banqueiros judeus e cristãos-novos que precisavam se equilibrar no jogo de poderes entre impérios e reinados. Outras ironias estão em judeus e cristãos-novos que eram perseguidos e, ao mesmo tempo, eram traficantes e donos de escravos e de engenho de açúcar. E dia menos dia, os judeus e cristãos-novos mais poderosos saíam do precário paraíso e mergulhavam no inferno.

E personagens fascinantes não são necessariamente cristãos-novos ou judeus. Lira Neto destaca uma das maiores figuras da história colonial brasileira, o padre Antônio Vieira, que circulava entre o velho e o novo mundos, entre a Península Ibérica e a Holanda, a “pátria dos anfíbios”. O padre participou de negociações estratégicas e ousou trabalhar pela readmissão dos judeus em Portugal, além de sugerir mudanças nos métodos e protocolos da Santa Inquisição.

No final do livro, Lira Neto explica que seu primeiro plano era escrever una biografia individual, mais convencional, de Maurício de Nassau, o governador da colônia holandesa no Nordeste. Mas, ao fuçar no tema, ele se desviou da rota original. O autor conta no livro que durante uma estadia em Nova York ele visitou o histórico cemitério da St. James Place e a sinagoga Shearith Israel – nome da congregação mais antiga de Manhattan, que significa Remanescente de Israel e se convenceu de uma vez por todas a mudar o foco do seu projeto.

Ascendência cristã-nova

E outro ponto pesou: o interesse pelo novo caminho cresceu quando Lira Neto descobriu a sua própria ascendência cristã-nova. Antepassados seus que, perseguidos pela Inquisição Ibérica, se refugiaram em Pernambuco e depois no serão do Ceará. Lira Neto é parte da biografia coletiva.

Coerente, Lira Neto não dedica o livro a uma pessoa, mas “para todos os desterrados, retirantes, refugiados, apátridas, proscritos, exilados, imigrantes, segregados, foragidos, expatriados, fugitivos e desenraizados do mundo”.

Com esta dedicatória, não há dúvida que este grande escritor cearense que mergulhou com afinco nos arquivos e logradouros históricos para produzir Arrancados da Terra está de olho também no presente, plenamente ciente que os judeus não são os únicos despojados e perseguidos.

E eu peço desculpas para no final admitir que não consegui me arrancar da nossa terra de Israel e comento os últimos acontecimentos.

Enquanto alguns pontificam que Israel é uma variante do apartheid sul-africano, vamos aos fatos: naquela democracia disfuncional, oito partidos que vão da extrema-direita à extrema-esquerda finalmente costuraram uma coalizão e afastaram Netanyahu do poder.

Difícil botar fé no sucesso deste conchavo bizarro e Netanyahu, acusado criminalmente em três casos de corrupção, tem aquele dom venal para sabotar estratagemas para que largue o osso.

Vamos esperar o milagre. Eu cheguei ao ponto da minha vida em que endosso Naftali Bennett como primeiro-ministro, isso mesmo, o líder ultranacionalista e religioso, contrário ao mero conceito de estado palestino. Se a geringonça funcionar, na rotatividade de poder depois será a vez de Yair Lapid, o líder centrista e secular. E para o troço andar, é vital o apoio de Mansour Abbas, líder de um partido islâmico.

Pelo visto, no país acusado de apartheid, não existe muita segregação no xadrez político.

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