Judeus mais religiosos perdem com vitória de Biden, mas são abençoados por Corte Suprema conservadora

Caio Blinder - Especial para a TJ

O placar 5 a 4 parece apertado, mas na verdade foi uma grande vitória para os judeus ultra-ortodoxos americanos e outras instituições religiosas mais conservadoras no país. Este foi o placar na decisão no final de novembro da Corte Suprema se alinhando com grupos religiosos na cidade de Nova York, argumentando que eram inconstitucionais os limites impostos pelo governador do estado, Andrew Cuomo, para reuniões religiosas para conter o alastramento da pandemia.

A maioria conservadora da corte decidiu que as restrições do governador violavam os termos da Primeira Emenda da Constituição, que protegem a liberdade religiosa. Ironicamente, esta vitória no Poder Judiciário teve lugar semanas depois da derrota de Trump para Biden na eleição presidencial, uma derrota para os grupos mais religiosos, como os judeus ultra-ortodoxos que votaram de forma esmagadora no presidente republicano. Trump, aliás, está deixando o poder como entrou: sem classe, esperneando, inventando lorotas sobre fraudes e rompendo os protocolos.

O papel de Trump para tornar a Corte Suprema e outras instâncias judiciais ainda mais conservadoras foi fator crucial para gente conservadora votar no quase ex-presidente, apesar de precisar tapar o nariz para o seu comportamento pessoal e atitudes execráveis.

Esta guinada conservadora culminou com a entrada na Corte Suprema, em outubro, da juíza bem conservadora Amy Coney Barrett, no lugar de Ruth Bader Ginsburg, judia e liberal, e que era um ícone feminista. Ela morreu em setembro. Nos EUA, o mandato judicial é vitalício e, apesar dos apelos de Barack Obama para que renunciasse e assim ele pudesse nomear outro juiz liberal no lugar dela, Ginsburg foi teimosa (talvez apostando que Hillary Clinton derrotasse Trump em 2016) e deu no que deu.

Na verdade, a configuração atual da corte é 6 a 3 a favor dos conservadores (a propósito, os dois juízes judeus são liberais como era Ginsburg), mas seu presidente, John Roberts, em algumas decisões, se alinha com os liberais, como neste caso de liberdade religiosa x saúde pública.

Roberts, nomeado por George W. Bush, é cioso da integridade institucional da corte e faz o possível para desfazer a impressão de que os juízes conservadores são apêndices do Partido Republicano e em particular de Trump. Em atitude rara para o presidente da corte, Roberts chegou a criticar Trump, que, sendo Trump, insultou o Poder Judiciário e questionou a integridade de juízes quando tomaram decisões que o deixaram insatisfeito e frustrado. Sobre esta recente decisão, ela foi o oposto de decisões em meses anteriores, envolvendo processos semelhantes nos estados de Nevada e Califórnia, em que a Corte Suprema ratificou a autoridade de governadores para limitar aglomerações religiosas durante a pandemia. Naqueles casos, a corte rejeitou por 5 a 4 os desafios de grupos religiosos contrários às restrições, com o presidente John Roberts se alinhando com os liberais.

Agora, a juíza Barrett, ligada a um grupo católico extremamente conservador, mostrou a diferença que faz uma corte mais conservadora. Foi a sua primeira contribuição decisiva desde que assumiu o cargo e sinaliza o que esperar da Corte Suprema nos próximos anos. Trump nomeou 3 juízes conservadores, todos na faixa dos 50 anos, ou seja, podem ficar por uma geração no tribunal supremo. Aliás, dos 9 juízes, seis são católicos, dois judeus, como já mencionei, e apenas um é protestante. Dos católicos, temos somente um na ala liberal.

A decisão de novembro da Corte Suprema foi emitida em resposta a processos movidos pela diocese católica do Brooklyn e por duas sinagogas ultra-ortodoxas, também no bairro, que é capital mundial de várias seitas chassídicas, ao lado de Jerusalém. Os grupos se disseram discriminados quando o governador Cuomo implementou restrições que limitaram reuniões religiosas em recintos fechados para no máximo 25 pessoas.

Na petição das sinagogas do Brooklyn, o governador (que, aliás, é católico praticante) apontou para uma religião em particular “para culpar e se vingar de um surto em uma pandemia que atinge toda a sociedade”. O argumento é equivocado, pois recentes surtos do vírus, nos estados de Nova York e Nova Jersey, tiveram lugar justamente em enclaves ultra-ortodoxos.

Jurisprudência

Ironicamente, a decisão da Corte Suprema em termos puramente legais é irrelevante, pois as restrições já foram suspensas. Ela vale pela jurisprudência e também como um recado para governadores e a sociedade em geral para deixar claras as prioridades de uma corte tão conservadora, mesmo quando a saúde pública está sob risco constante.

Não há dúvida que a opinião da maioria conservadora nesta decisão tem argumentos muito pertinentes, especialmente devido a contradições. O exemplo mais gritante é que grupos liberais nunca se queixaram das aglomerações em protestos contra racismo (embora tenham ocorrido em ambiente aberto e em grande maioria com os manifestantes usando máscaras).

E neste caso específico, os conservadores lembraram que foram impostas restrições para reza em templos, mas não para acupuntura, que não é exatamente uma atividade marcada por distanciamento social.

O juiz conservador Neil Gorsuch fez questão de emitir uma opinião individual, ressaltando que ninguém nega os graves desafios representados pela pandemia, mas que não faz sentido tolerar “éditos do Poder Executivos que reabrem lojas de bebidas alcoólicas, mas fecham igrejas, sinagogas e mesquitas”. Pela minoria, o juiz Roberts escreveu que “é uma questão significativa passar por cima de determinações feitas por autoridades da saúde pública sobre o que necessário para a segurança pública em meio a uma pandemia fatal.”

E os fatos são inquestionáveis e mortais. Eventos de superalastramento da pandemia têm sido rastreados para aglomerações religiosas em recintos fechados, quando os fiéis rezam e entoam cânticos sem máscaras.

As relações do governador Cuomo e do prefeito novaiorquino Bill de Blasio com os judeus ultra-ortodoxos ficaram muito tensas nesta pandemia e protestos até violentos foram realizados no Brooklyn.

A mesma tensão não teve lugar em Nova Jersey. O governador Phil Murphy tem sido menos draconiano nos sucessivos surtos da pandemia em Lakewood, uma cidade de 100 mil habitantes em que 70% são ortodoxos. A opção em Nova Jersey tem sido um ataque mais direcionado nos surtos, com rastreamento da vida social das vítimas do vírus e incremento da testagem.

E, obviamente, a mesma tensão entre autoridades estaduais e a grande maioria da comunidade judaica nos EUA não é vivida como no caso do Brooklyn. Sinagogas e instituições judaicas se ajustaram aos novos tempos. Nas Grandes Festas, quando a temperatura ainda estava bem amena, os serviços eram realizados em tendas ao ar livre.

E de modo algum, a imensa maioria dos judeus americanos trata a pandemia como algo secundário e que não deve interferir nos rituais religiosos. Sem acesso à mídia tradicional, muitos judeus ultra-ortodoxos são presas fáceis para teorias conspiratórias e acreditam nas lorotas absurdas disseminadas por Trump sobre a pandemia.

Trump perdeu e pode berrar à vontade. A partir de 20 de janeiro, o inquilino na Casa Branca se chama Joe Biden, que pessoalmente leva religião muito mais a sério do que o quase ex-presidente. E enquanto a pandemia fica conosco por um bom tempo, a Corte Suprema nos EUA, de tendência conservadora, ficará por um longo tempo.

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