Da minha quarentena, rabiscos sobre os primeiros dias da era D.C.

Caio Blinder - Especial para a TJ

Eu escrevo este texto na terça-feira, dia 7 de abril, ainda no início da era D.C. (depois de Corona). Já que estamos com referências bíblicas, lembro que escrevo na véspera do Pessach.

No entanto, ainda não iniciamos a travessia rumo à Terra Prometida e, na alusão clichê, seguimos assolados por esta praga número 11. E realmente não considero a China, foco inicial da pandemia e que parece ter controlado o vírus, uma Terra Prometida.

Vivendo no meu confinamento na área metropolitana de Nova York, o epicentro da pandemia nos EUA nestes dias de abril, eu me distancio do presente e me pego olhando para o futuro e para o passado em busca de referências e mesmo de consolo. Sobre o passado, claro que me refugio em alguma fantasia nostálgica do tipo “a gente era feliz e não sabia”.

Com amigos de toda minha vida (pertencentes a uma tribo de judeus paulistanos, praticamente todos nascidos ao longo do espectro da classe média), há um papo comum.

Para nós até que foi mole até agora. Cada um teve suas doses individuais de alegrias, sucessos, tristezas e fracassos, mas nem dá para comparar com a saga coletiva de nossos pais e avós, judeus errantes pelo mundo, fugindo de calamidades econômicas, guerras e antissemitismo. Nestes termos, meus 62 aninhos de vida (já mais vividos nos EUA do que no Brasil) foram tranquilos.

Eu me flagrei nestes dias de confinamento, me lembrando do sócio do meu pai nos negócios, o “seu Berek”, com seu braço tatuado de sobrevivente de Auschwitz. Relembrei de histórias do meu avô paterno que, assim que chegou ao porto de Santos, foi recebido por um primo e no caminho para São Paulo ele o ensinou algumas palavras em português para que rapidamente começasse a trabalhar de camelô nas ruas.

Mas, e daí? Existe o clear e present danger. Talvez eu tenha muito tempo à frente para fazer reflexões do bunker (meu apartamento em um subúrbio de Nova York, cada vez mais subúrbio fantasma, neste abril do confinamento).

Nunca é fácil calibrar entre o wishful thinking (tudo vai acabar bem) e ataques de pânico (Oh My God, é o fim do mundo). Não me considero um “influencer” (este ofício patético da era digital), mas existo nas redes sociais. Tento dar uma contribuição com pequenos gestos, como parte da terapia global, enquanto o vírus está aí.

Alguns seguidores no Twitter agradeceram ao vídeo que postei de uma flashmob executando “Ode à Alegria”, de Beethoven, na Espanha em 2012. O vídeo baixou por alguns minutos minha ansiedade. Postei também a cena da cantora de ópera israelense que faz serenata matinal para o pai em quarentena em Tel Aviv.

Quem diria, eu, surdo musical, ligado em Beethoven. Ao menos, há esperança no fundo do ouvido.

Aflições judaicas

Terapias musicais e whisful thinking nunca são vacinas completamente eficazes. Impossível ficar imune às ansiedades e às aflições. Judaicamente, vamos ficar nas judaicas. Claro que dá uma tremenda aflição acompanhar o distanciamento cultural de ultra-ortodoxos em Jerusalém ou no Brooklyn, apesar de todo o apelo para alterarem a rotina.

Mas, não quero soar hostil a este segmento do “my people”. Quando o vírus irrompeu em terras norte-americanas, um fulminante alvo foram comunidades judaicas em Nova York e aqui em New Jersey (liberais, outras conservadoras e algumas afiliadas à ortodoxia moderna). A nossa comunidade congrega, aglomera.

E congregações sofreram. Talvez no Brasil, as pessoas saibam o que aconteceu em New Rochelle, uma cidade perto de Nova York, a primeira a sofrer confinamento, e foi justamente em função da alta incidência de casos na comunidade judaica. A boa notícia é que a vida já começa a se normalizar em New Rochelle, pioneira no estado em adotar medidas de isolamento social.

Não posso dizer o mesmo das minhas bandas. Ainda não há luz no fim do vírus. E aqui estou sendo literal. Eu vivo em Englewood (cidade com muitos judeus e muitos coreanos), muita afetada, mas nem se compara à situação na cidade-subúrbio de Teaneck, número 1 em casos em New Jersey. Teaneck é a cidade mais judaica de New Jersey em termos proporcionais (40% da população é judaica).

A quatro minutos de carro de casa, em Teaneck, fica o hospital católico Holy Name, ground zero em New Jersey na luta contra o coronavírus. Também perto de casa está o enorme hospital de Englewood. Lá em cima falei do meu novo ouvido musical para Beethoven. No entanto, a sinfonia mais frequente que escuto é a da sirene das ambulâncias.

Há histórias judaicas muito tristes nesta era D.C. Aqui um exemplo: uma das mortes em Nova York foi a do sociólogo William Helmreich, um profundo estudioso do judaísmo e um sabe-tudo sobre Nova York. Ele ficou conhecido por ter percorrido a pé todos os quarteirões da cidade para fazer pesquisas sociológicas. Ao longo de quatro anos, Helmreich percorreu oito mil quilômetros e gastou oito solas de sapato. Está aí um judeu errante.

Filho de refugiados do nazismo, Helmreich nasceu na Suíça e foi criado no Upper West Side de Manhattan. Ele escreveu 18 livros, um deles publicado em 1992 foi um estudo sobre sobreviventes do Holocausto e como eles conseguiram ter uma vida bem-sucedida em Nova York.

E uma história que deixaria Helmreich muito orgulhoso, uma história de resiliência na cidade, contada no New York Times. Duas mulheres judias, casadas, simplesmente extraordinárias, uma de 101 anos de idade e a outra de 95. Elas viveram o pior do século 20, agora enfrentam juntas esta mazela do século 21.

Duas mulheres

Naomi Replansky, a mais velha, é poeta e ativista sindical. Ela nasceu no Bronx em 1918, no começo da gripe espanhola, e perdeu a irmã para a epidemia. Eva Kollisch, sua mulher, ex-professora universitária de literatura, conseguiu fugir do Holocausto, da Áustria, em 1939, através do Kindertransport. A família conseguiu se reunir em Nova York no ano seguinte. Estas duas mulheres que tanto viveram e tanto sofreram hoje se dizem mais preocupadas com sua geração do que com elas próprias.

Eu não sou da mesma geração destas duas estupendas senhoras. Eu tenho a sensação de que está tudo embolado. Estamos vivendo ao mesmo tempo a gripe espanhola, a Grande Depressão, a Segunda Guerra, o 11 de setembro, a Grande Recessão e vai por aí (sofremos e pagamos um custo assombroso nestas tragédias, mas seguimos, né?)

Em alguns países, falta uma coordenada resposta nacional. No mundo sob um ataque pandêmico, falta uma fulminante resposta global, embora uma alucinante corrida em todas as partes por remédios e a bendita vacina. Ha ensaios também de remédios econômicos comuns. Eles não devem ser definidos como pacotes de estímulos, mas de socorro mesmo para evitar a fome, o relento e a quebradeira da economia. Desde a Segunda Guerra, não ocorria uma expansão do estado com tais magnitude e velocidade, como agora. Não se trata do estado do bem-estar-social, mas do estado-socorro.

Quem ainda não viveu o pico da epidemia, responde de forma humana e se mostra mais preocupado com a economia do que com o vírus. Alguns dirigentes também pensam assim por ignorância, oportunismo, negacionismo ou covardia política.

Aprendi por estes dias que existe a palavra em inglês antigo (época da Idade Média, algo bem apropriado) que é overmorrow, o dia após amanhã. Hoje está duro. Amanhã é incerto. Estou sonhando com a chegada do overmorrow.  Enquanto isso, hoje, amanhã e sei lá por quanto tempo, eu fico em casa. Espero que vocês também.

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