Caio Blinder: confissões judaicas no meu bunker em New Jersey

Caio Blinder - Especial para a TJ

Cá estou escrevendo no final de abril do meu bunker em New Jersey. Estou basicamente confinado desde meados de março. Nada dramático, tudo tolerável. Não custa repetir que tudo é mais ameno em comparação às peripécias de nossos antepassados.

Vagar como um judeu errante rumo à Terra Prometida são as saídas para o supermercado e caminhadas feitas em locais mais distantes do meu prédio, na cidade de Englewood, muito urbanizada para a era D.C. (Depois do Corona). Eu e minha mulher vamos de carro para algum local menos aglomerado e caminhamos para manter a sanidade física e mental.

Alguns sinais de “insanidade” estão no reforço de algumas obsessões judaicas (e israelenses). Eu busco freneticamente séries com a temática no streaming. Já estava acometido deste vírus antes do Corona, mas na quarentena ficou mais acentuado.

Talvez seja uma necessidade de voltar às raízes e se distanciar desta aflição universal que é o vírus. Claro que assisti a “Fauda 3”. E no embalo, por que não iria rever as duas primeiras temporadas? Fiz o mesmo com outras séries. Depois de ver “Não Ortodoxa”, por que não de novo “Shtisel”?

Fazendo a busca no streaming em filmes com temática judaica, topei com “Exodus” e Paul Newman no auge da forma e do charme. “Exodus” é saga estilo “Dez Mandamentos”, um daqueles filmes clássicos com intervalo devido à longa duração. Confesso que não aderi a nenhum êxodo durante a exibição. Assisti inteirinho numa noite de segunda-feira, interrupção apenas para o pipi.

E já que estava embalado, fui pesquisar filmes que marcaram minha infância e adolescência. Saí em busca do meu herói (judeu, é claro) Kirk Douglas, em “A Sombra de um Gigante”, também ambientado na época da independência de Israel.

Mas não sou tão nostálgico. Fui embalado por uma penca de filmes israelenses contemporâneos nas últimas semanas com os suspeitos habituais: judeus e palestinos em graus variados de relacionamento. Uma dica de uma trama original (embora implausível) é “A.K.A Nadia”, sobre uma jovem palestina (Nadia), que em razão de circunstâncias nebulosas, assume a identidade judaica de Maya, em uma história muito melancólica.

E falando em melancolia, foram devastadores os seis capítulos de Plot Against America, a adaptação do livro de Philip Roth, ambientado no início dos anos 40, em uma história alternativa em que o herói-aviador Charles Lindbergh (simpático a Hitler) derrota Franklin Roosevelt nas eleições.

Devastador em primeiro lugar pelos paralelos com os dias de hoje. Afinal o movimento xenofóbico e isolacionista de Lindbergh se chamava America First, o slogan de Donald Trump. E devastador pois a trama centrada em antissemitismo e identidade judaica, se passa aqui em New Jersey, em Newark, a cidade natal de Philip Roth e cenário de muitos dos seus livros.

Alguns podem perguntar: ué, Caio, você basicamente está conectado na televisão na era D.C.? Sim, confesso que exagero, seja para acompanhar a praga do noticiário, seja no escapismo das séries. Um antídoto foi que, após algumas semanas desprovido de concentração para mergulhar em um livro, finalmente consegui pegar um e virar as páginas.

Nenhuma surpresa na temática. Tinha comprado o livro meses atrás e ele hibernava na cômoda ao lado da cama. Numa noite, desolado com tanta notícia aterradora, me refugiei no quarto e decidi encarar o livro, que foi devorado em dias. O nome é “Genius & Anxiety” e o assunto são os judeus que mudaram o mundo entre 1847 e 1947. O autor é Norman Lebrecht e o listão tem nomes conhecidos como Marx, Freud, Proust, Einstein e Kafka.

Outros, no entanto, desapareceram da memória coletiva ou são desconhecidos apesar de sua importância. Destaco alguns cientistas como Karl Landsteiner (vital na transfusão de sangue), Siegried Marcus (quimioterapia) e Rosalind Franklin (genética).

Mais na minha área de “humanas”, aprendi um pouco mais sobre a lendária atriz francesa Sarah Bernhardt, filha de uma prostituta de primeira classe, que inventou a ideia de fama. Que bom, né? Ainda obcecado por judaísmo, mas ao menos capaz se desligar do vírus.

De volta à praga

Bem, após este intervalo de alguns parágrafos, de volta à praga. Uma das minhas leituras sobre o tema (e ainda judaica) é literalmente mórbida. Busco obituários judaicos de vítimas do vírus e poucas coisas comovem tanto como as histórias de gente que sobreviveu ao Holocausto, mas não ao coronavírus.

No site da BBC, li a história sobre Henri Kichka, um dos últimos sobreviventes do Holocausto na Bélgica. Kichka morreu do vírus em 25 de abril, aos 94 anos, em uma casa de repouso em Bruxelas. Kichka foi um dos poucos homens e mulheres que sobreviveram a Auschwitz.

Ele falou à BBC em janeiro sobre sua experiência. Questionado sobre como sobreviveu, Kichka disse: “Não era possível viver em Auschwitz. O lugar em si era a morte”. Em uma homenagem publicada no Facebook, seu filho Michel Kichka escreveu: “Um coronavírus microscópico obteve sucesso em algo em que todo o Exército nazista falhou. Meu pai havia sobrevivido à Marcha da Morte, mas hoje sua Marcha da Vida terminou”.

E outras longas marchas de judeus foram interrompidas pelo vírus. Outro obituário foi o do americano Philip Khan, que morreu em abril aos 100 anos. Samuel, seu irmão gêmeo morreu na gripe espanhola em 1919, com algumas semanas de vida. Khan era um veterano condecorado da Segunda Guerra Mundial e combateu na selvagem batalha de Iwo Jima. Ele nasceu em Manhattan, onde seu pai era dono de padaria e morreu em casa, em Long Island.
Kichka e Khan foram seres humanos incríveis e judeus resilientes. Sobreviveram a Auschwitz e a Iwo Jima. E em abril de 2020, foram vítimas de um inimigo invisível de toda a humanidade.

Mas, quero acabar esta coluna de quarentena para cima, falando da vida e de alguns raios de esperança em Israel. No Washington Post, havia o comovente relato sobre o hospital Hadassah Ein Kerem, em Jerusalém. O vírus uniu um paciente e um médico, apenas a doença permitiu a aproximação. O paciente é Jesse Michael Kramer, um judeu ultra-ortodoxo de 75 anos, e o jovem médico de 30 anos é Fadi Kharouf, cidadão israelense de origem árabe e muçulmano. Kramer já está em convalescença na sua casa, no enclave haredi de Jerusalém. Ele só tem palavras bondosas sobre o médico e o sentimento é mútuo. O inimigo comum remove montanhas de desconfiança e hostilidade.

Kharouf diz não ter dúvidas que ele e a maioria dos seus pacientes judeus ultra-ortodoxos têm visões políticas e de mundo extremamente diferentes, mas isso não importa agora. O clima é de respeito e de aprendizado. O médico muçulmano, por exemplo, aprendeu muito sobre rituais judaicos e ajudou pacientes enfraquecidos pela doença a enlaçarem o tefillin na hora da reza. E infelizmente, aprendeu trechos do kadish.

O inimigo comum da humanidade e de nossa humanidade reforçou o papel dos hospitais como uma das poucos pontes de intersecção em Israel, onde são tratados tanto colonos judeus na Cisjordânia, como ativistas palestinos. Existe inclusive uma alta representatividade da minoria árabe (20% da população) no serviço médico-hospitalar.

Como em todas as partes do mundo, multidões seguem o ritual no começo da noite de aplaudir das varandas e janelas dos seus apartamentos o trabalho dos heróis da saúde neste momento tão aflito de nossa história. E não importa a raça, religião, etnia e nacionalidade destes heróis.

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