Clara Ant, testemunha ocular da história

Joel Rechtman - Editor Executivo da TJ

Tribuna Judaica: Como uma judia que nasceu na Bolívia e viveu um período em Israel, se transformou em uma testemunha ocular da história brasileira?
Clara Ant: Eu tinha apenas dez anos de idade e os quatro primeiros anos de estudo quando saí da Bolívia. Vivi só um ano em Israel, quando já tinha 21. Ou seja, praticamente toda a minha vida adulta se dá no Brasil. São 63 anos. Aqui completei os estudos básicos. Aqui conheci a brutalidade de uma ditadura quando tinha apenas 16 anos e fui dando cada vez mais valor à democracia. Morei no Bom Retiro até me casar. Estudei no Renascença, no Colégio Estadual Otávio Mendes e no Cursinho Universitário. Me formei na Arquitetura da USP. Depois de formada, dei aula muitos anos. Sou filiada ao Partido dos Trabalhadores, PT, desde a fundação, em 1980 e conheço o Lula desde quando fui diretora do Sindicato dos Arquitetos, em 1977. Por isso me considero brasileira de coração.

TJ: Você representou a comunidade judaica como deputada estadual, entre 1987 e 1991, e continuou fazendo esta interlocução com o Ishuv. Como você imagina sua atuação com a possibilidade de volta ao poder?
CA: Tendo como norte as convicções de justiça social e da democracia. Acredito que no meu mandato de deputada estadual constituinte, representei os preceitos que embasam os princípios do judaísmo. Mas, sabendo que a comunidade judaica – tal como toda e qualquer outra comunidade – é heterogênea nas suas opções políticas, a identificação foi maior entre aqueles e aquelas que mais se preocupam com a desigualdade social. Quanto à possibilidade da volta ao governo, vamos aguardar o resultado das eleições. Mas uma coisa é certa, caso Lula seja vitorioso, ele certamente repetirá o respeito que teve com todas as religiões, a proximidade com as comunidades em geral e vai se dedicar, na parte que cabe ao poder executivo, a fazer cumprir a lei para impedir essa inaceitável presença e expansão do antissemitismo no país.

TJ: Seu livro de memorias foi lançado. Quais são os destaques?
CA: Meu livro “Quatro Décadas com Lula, o Poder de Andar Junto” é um testemunho das quatro décadas que tive o privilégio de atuar com proximidade ao lado desse líder reconhecido em todo o mundo como um dos melhores chefes de estado e o governante que teve o maior sucesso na geração de empregos, redução da pobreza e erradicação da fome. Tanto é que o Brasil naquela época saiu do Mapa Mundial da fome e lamentavelmente agora está de volta. Isso pode ser constatado ao circular pelas ruas de qualquer cidade brasileira. Destaco bastante o movimento sindical das décadas de 1970 e 1980, quando me orgulho de ter sido uma das fundadoras da CUT e uma das únicas mulheres da sua primeira direção. Relato as viagens de Lula a Israel em 1993 e em 2010 e a política externa. São 430 páginas e dezenas de fotografias. Muitas histórias.

TJ: Envie uma mensagem para a comunidade nesta véspera de ano novo.
CA: Muita saúde e esperança para todas e todos. Muita paz para o Oriente Médio e para todo o mundo. Que cesse essa triste guerra – Rússia e Ucrânia – que começou este ano e lamentavelmente não se sabe se e quando vai terminar. Que os povos no Brasil e no mundo vivam dias melhores. Que a fome seja erradicada em toda parte. Que o racismo seja criminalizado urgentemente e deixe em paz o convívio entre as pessoas. Que nunca mais se tolere no Brasil a existência de mais de 500 núcleos neonazistas. Que o antissemitismo seja punido imediatamente. Que a homofobia, o machismo e a misoginia sejam abolidos. E que esta comunidade, conhecida como o Povo do Livro, se dedique a um país com mais livros e menos armas. Shaná Tová.

TJ: Em todos esses anos de vida pública, houve algum episódio de antissemitismo?
CA: Quando fui demitida da PUC Campinas, em 1978, o reitor Benedito José Barreto Fonseca, perguntado por jornalistas sobre a razão de minha demissão, respondeu algo como: “Além de fazer campanha salarial, além de participar da oposição ao sindicato e querer construir uma associação de professores aqui na PUC de Campinas, além de tudo isso, ela é judia, boliviana e divorciada”. Em tão poucas palavras, antissemitismo, xenofobia e machismo foram escancarados de uma só vez.

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