A Ucrânia invadida e devastada por Putin está no coração das “Terras Sangrentas” da Europa

Caio Blinder - Especial para a TJ

Eu estou tão focado e obcecado com a guerra na Ucrânia, que relaxei num sabadão à noite revendo na televisão uma clássica comédia que foi ao cinema em 1966. “Os Russos Estão Chegando! Os Russos Estão Chegando!” (sim, dose dupla no título) gira em torno de um submarino russo (opa, soviético) encalhado em uma ilha na costa dos EUA, o que leva a interações entre os marinheiros e a população local. A comédia é adorável e spoiler alert: tem happy end, nada de Terceira Guerra Mundial.

Claro que podemos fazer piada de tudo, mesmo no horror, algo tão judaico, né? Afinal, o presidente da Ucrânia, o Zelensky, é comediante de profissão. Em contrapartida, o ex-tenente-coronel da KGB, o Putin, tem tudo, menos senso de humor. Então, piada nele: ele morre, vai para o inferno e após alguns anos lá embaixo, graças ao bom comportamento, recebe permissão para dar uma subidinha na Terra. Putin vai para Moscou, entra no bar, pede uma vodca e começa a bater papo com o garçom:

Putin: Odessa é nossa?
Garçom: Sim.
Putin: E o leste da Ucrânia?
Garçom: Também.
Putin: Tomamos Kiev?
Garçom: Totalmente.
Putin: Quantas boas notícias, quanto te devo?
Garçom: Cinco euros.

Precisamos de humor ao falarmos daquelas terras trágicas, na verdade o termo é Terras Sangrentas, o fascinante e tenebroso livro do historiador Timothy Snyder, sobre aquelas bandas entre Alemanha e Rússia, compreendendo Polônia, Repúblicas Bálticas, Belarus e obviamente Ucrânia. Lembrei do livro quando comentei nas minhas redes sociais que minha família tinha vindo daquelas bandas, mais precisamente da Ucrânia (no caso da minha avó paterna, o dono mudava, podia ser também Romênia – Bessarábia). Minha família direta escapou do pior no século 20, pois caiu fora da Ucrânia nos anos 20. Quem ficou, morreu no Holocausto e no caso da Ucrânia em geral não foi em campo de concentração, mas por ação das unidades móveis alemãs, auxiliadas por colaboracionistas ucranianos (mesma coisa em países vizinhos).

De 1930 a 1945

O Terras Sangrentas, de Snyder, é mais amplo do que a Segunda Guerra, cobre o período que vai de 1930 a 1945 e 14 milhões de pessoas (não apenas judeus, obviamente) foram dizimadas por Hitler e Stalin.

Na Ucrânia em si foi um horror dantesco. No caso específico do Holocausto, representou 25% das mortes (1,5 milhão de judeus). E há os milhões mortos de fome induzida pelos planos de coletivização de Stalin (Holodomor, 1932/33, e por algumas estimativas, cerca de quatro milhões de pessoas). O sacrifício da União Soviética foi descomunal na Segunda Guerra, no total 21 milhões de mortes e a fatia ucraniana foi simplesmente terrível, cerca de 7 milhões.
Eu menciono estes mortos quando quero falar do esforço de sobrevivência da Ucrânia, vítima de Stalin, depois de Hitler e em seguida novamente de Stalin e seus sucessores (Kruschev, aliás, viveu muito tempo na Ucrânia, inclusive no cenário da Segunda Guerra Mundial). E penso nos ucranianos que não conseguiram sobreviver ao assalto putinesco.

Um dos casos mais tristes foi o de Borys Romanchenko, um sobrevivente de 96 anos do campo de concentração de Buchenwald (e passou por outros), morto em 18 de março quando os russos bombardearem seu edifício de apartamentos em Kharkiv. O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, tuitou: “Sobreviveu a Hitler, assassinado por Putin”.

Imaginem como devem se sentir os 10 mil sobreviventes judeus do Holocausto na Ucrânia quando Putin e seu arsenal de propaganda nos bombardeiam que o objetivo da invasão é “desnazificar” a Ucrânia. O que isso significa? O presidente judeu Zelensky é um colaboracionista, um kapo? Em um aspecto está em marcha a “desnazificação” da Ucrânia, graças aos danos que os bombardeios russos têm causado a memoriais do Holocausto.

Memória do Holocausto e de antissemitismo naquelas “terras sangrentas” não morre e Putin e seu aparato de agitprop são incansáveis para distorcer a história. Eu pessoalmente sou bombardeado nas minhas redes sociais (em particular no Twitter) pelos bordões sobre os “nazis ucranianos”, em geral fazendo referências ao Batalhão Azov, formado por milicianos nazistas. Sim, há nazistas na Ucrânia, como em toda as partes, da New Jersey onde vivo ao Rio Grande do Sul.

Supremacistas brancos

Eu me preocupo mais com o perigo de supremacistas brancos nos EUA ou com a força da extrema direita em países como a França. No caso da Europa Oriental, das “terras sangrentas”, estão aí as pesquisas. Adivinhem qual é o país naquelas bandas em que existe menor incidência de antissemitismo? Ora, a Ucrânia. Putin quer envenenar tudo, dos seus oponentes, como Alexey Navalny, à história.

Claro que a história é carga pesada e com este crime putinesco ficará ainda mais pesada para a Ucrânia. Ironicamente, um imã para refugiados nesta guerra é Lviv, no oeste da Ucrânia, capital cultural do país e que antes da Segunda Guerra era um dos grandes centros do judaísmo europeu. Refugiados muitas vezes são abrigados na área onde ficava o gueto judaico na cidade até 1941. Era o terceiro maior na Europa, depois de Varsóvia e Lodz, com 100 mil habitantes.

Da estação ferroviária de Lviv, os judeus eram transportados para os campos de concentração. Hoje transportam refugiados para a Polônia e trazem voluntários para lutar contra os russos.

Ah, Putin, determinado a restaurar as glórias imperiais, soviéticas e czaristas. A estação ferroviária de Lviv teve outro propósito depois da “libertação” pelas tropas soviéticas na Segunda Guerra. Os trens levaram para o Gulag os acusados de colaboracionismo com o nazismo. O regime soviético com seu pendor para revisionismo histórico quis apagar este capítulo da história de Lviv. Mesma coisa com a ravina de Babyn Yar, perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados em dois dias (repito, dois dias) em 1941. As vítimas eram meramente tratadas como “cidadãos soviéticos”, nenhuma menção que as vítimas tinham sido assassinadas meramente por serem judeus.

Será que Putin acredita no que propaga? Ao que tudo indica, sim. Vai além de cinismo, ele delira. Putin, o gangster nuclear nos deixa sobressaltados. Desde a revolução de 2014, que causou a primeira invasão da Ucrânia, o ditador russo não mede esforços, para alastrar a fábula da nazificação da Ucrânia e isso enquanto dentro da Rússia existe um processo de glorificação de Stálin, o responsável por, entre outras coisas, o Holocausto ucraniano, Holomodor.

É preciso deixar claro que quando Putin nos remete aos tempos da Segunda Guerra não é para honrar a identidade de vítimas do Holocausto mas para lembrar os sacrifícios soviéticos, algo que ninguém nega, embora jamais devamos esquecer o pacto de não agressão firmado pelos dois tiranos antes da Segunda Guerra e que resultou na partilha da Polônia entre eles.

Em Lviv por muito tempo não havia monumento aos judeus que viviam na cidade e que tinham sido dizimados pelos nazistas. Nenhuma referência no espaço público que ali existia um gueto judeu. O historiador austríaco Martin Pollack escreveu sobre lugares como Lviv, denominados “ambiente contaminado”. Hoje em Lviv, existe um museu com as evidências das atrocidades nazistas e também das atrocidades praticadas pelo regime soviético. Putin é o elo com a história. Ele contamina a história e naquelas “terras sangrentas”, 80 anos depois de Hitler (e Stalin), é sua vez de cometer crimes contra a humanidade.

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