Ser voluntário em Israel por uma perspectiva pessoal

Lucia Barnea - Especial para a TJ

Setembro de 2020, Raanana, apreensão frente ao segundo lockdown. Véspera de Rosh Hashaná, emoções desencontradas: por um lado, a esperança e o otimismo com a aproximação do ano novo judaico; por outro, a ansiedade frente ao desconhecido e o receio pelo déjà vu da onda anterior, do chacoalhar renovado de uma rotina já enfraquecida e instável, de famílias separadas em cápsulas nucleares celebrando a festividade, do setor de PMEs a se pulverizar, do café e da quitanda da esquina fechados sem aviso prévio, da cultura jogada à sarjeta, do cancelar da programação esportiva, projetos e investimentos seguros – pulverizados. Forte nostalgia por uma vida pré-março, pré-segundo decênio do século XXI, quando corona significava para os não iniciados pouco mais do que coroa em espanhol, antes de nos habituarmos a nos esconder atrás das máscaras que, outrora, indicavam doença, e hoje simbolizam proteção… Como sociedade, sobrevivemos ao primeiro confinamento, Israel de certo se sobressaiu entre os países que protegeram seus cidadãos e cuidaram da terceira idade em particular; a economia nacional foi a principal vítima, bem entendido, Todos Nós.

Seis meses se passaram, hoje sabemos mais sobre o COVID-19, que para conter a pandemia é primordial seguir um timing preciso na execução de políticas públicas, testemunhamos mundo afora como países distintos lançam mão de estratégias diferentes, optando por modelos que variam tanto como os Estados Unidos, o Brasil e a Suécia, ou a Áustria, a Suíça, o Japão, a China e Israel. Entre outras, a compreensão da variável cultural é central para a análise do fenômeno do combate ao coronavírus. Esse, porém, não é nosso tema.

Segundo índices atualizados do Ministério do Interior, a população israelense tem hoje cerca de 9.150.000 habitantes. O Ministério da Justiça por sua vez edita anualmente uma lista de todas as organizações não governamentais e sem fins lucrativos do Terceiro Setor, a Guidestar Israel. Segundo seu website (www.guidestar.org.il), em 2020 estão registradas 42.600 ONGs, das quais 36.000 são ativas. De certo modo, somos uma startup nation de ONGs! Uma locomotiva social praticamente, se não gerida, ao menos movida por voluntários. A razão de ser dessas organizações do chamado Terceiro Setor é tão diversificada como a própria sociedade israeli.

Há, imagino, um substrato comum a todos os ativistas voluntários, qual seja, certo inconformismo latente e o reconhecimento tácito da incapacidade do Governo de fazer face a todas as necessidades da população. Ser voluntário significa tomar para si a responsabilidade e a coautoria pela construção de um mundo melhor, traduzindo, Tikun Olam. Vislumbrar a brecha na criação do Universo é aceitar o desafio da parceria e obrar por uma sociedade e uma realidade idealizadas. Se nos basearmos na pirâmide do psicólogo clínico Abraham Maslow, é preciso alcançar o quinto estágio mais elevado de saciedade das necessidades pessoais para se envolver com projetos de realização pessoal, como doar de seu tempo e energia para iniciativas que não estão envolvidas diretamente com sua própria subsistência. Trata-se sem dúvida de uma doação, de um compromisso social maior. Para que isso ocorra, faz-se necessário que o indivíduo se sinta ele mesmo rico e pleno – é quase uma condição sine qua non, só doa quem sabe que tem para doar. Todos temos algo para oferecer, mas nem todos reconhecemos nossas riquezas.

Voluntariar implica também reconhecer sua humildade e carência como indivíduo. Significa multiplicar os recursos disponíveis, acreditar em soluções win-win, enfim, contribuir para a sustentabilidade do planeta Terra.

Vejo no caráter e na ação do voluntariado algo inerente ao Judaísmo, cuja origem se encontra atrelada ao conceito de resiliência, ou hossen em hebraico. Significa a habilidade de fazer face às adversidades e seguir adiante, com um quê de “levanta, sacude a poeira e dá a volta por cima”, nas palavras do poeta. Resiliência inclui ambos resistir, aguentar firme, mas também improvisar e ousar aplicar soluções inusitadas e não ortodoxas aos desafios existentes. Segundo Dickson e Baum (www.isresilience.com), o sujeito resiliente é essencialmente alguém flexível, empático e pleno de significado interior. Imbuídos desse espírito resiliente, há mais de dois mil anos, nossos ancestrais reinventaram seus destinos e recriaram a vida comunitária judaica nas novas diásporas que se formavam, com a grande dispersão ocorrida após a destruição do Segundo Grande Templo. Assim remanejaram nossos antepassados na sua maior parte ao longo do século anterior, quando deixaram seus países de origem e imigraram para o Brasil, onde criaram raízes e descendência. Assim ocorre em nossa trajetória pessoal, como novos imigrantes em Israel.

O voluntariado é encarado de forma tão séria em Israel, que ele é ironicamente obrigatório para todos os alunos do Ensino Médio. Há todo um racional envolvido: o Ministério da Educação condiciona o direito ao diploma de bagrut ao cumprimento de 120 horas de serviço voluntário realizado ao longo de três anos a ser selecionado em uma lista de instituições credenciadas ao projeto, que por sua vez devem ratificar as horas lançadas, e que posteriormente serão aprovadas pelo professor responsável. Em paralelo, os conceitos de cooperação social e empatia são desenvolvidos, seja em Educação Cívica ou ainda na classe de História do Povo Judeu.

Toda essa prática quase se liquefez com a eclosão da primeira onda do COVID-19 e a estratégia governamental de confinamento da população em Israel. Era preciso adequar a estratégia educacional às novas circunstâncias. A palavra de ordem foi adaptação e reajuste. A partir desse momento, toda e qualquer forma de empatia e prestação de serviço voluntário foi validada, desde ligar para o avô ou avó para saber como estão, passear o pet dos vizinhos, ou ainda fazer compras para indivíduos e famílias em isolamento.

Em um movimento rápido e curioso, busco dados sobre ONGs que se ajustaram ao momento tão sui generis e propõem soluções para a situação caótica atual. Ao todo, são mais de 2.000 ONGs em Israel que oferecem serviços sociais para lidar com o coronavírus, seja no auxílio emergencial em momentos de crise, no recrutamento de voluntários ou ainda na assistência diferenciada a médio e longo prazo.

A isso denominamos resiliência, talvez Israeliência.

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