Na sinagoga de Montreal, o sonho canadense do fotógrafo português

Caio Blinder - Especial para a TJ

Parem as máquinas! Na primeira coluna de 2022, não vou erguer mais um muro das lamentações, reclamando disso ou daquilo. Chega, por ora. Começo por cima, comovido com a reportagem do New York Times publicada na virada do ano sobre o português Braulio Rocha. E a Tribuna Judaica com isso? Tudo com isso.

Sim, podemos começar com “era uma vez um português”… E lá vai a história. Anos atrás, Braulio Rocha era faxineiro em uma sinagoga de Montreal e estava pronto para iniciar sua rotina diária de varrer o chão quando escutou uma voz frenética: a avó do bebê prestes a ser o objeto do bris estava em pânico, pois o fotógrafo contratado para registrar o flagrante histórico não tinha aparecido.

Braulio era fotógrafo amador e tinha recentemente chegado da Ilha da Madeira, na pindaíba: 50 dólares no bolso e uma velha Cannon, sempre presente no carro. Com chutzpah (aquela audácia mais judaica do que portuguesa), ele foi voluntário para registrar o bris, a vovó frenética concordou e uma nova carreira nasceu em Montreal. A carreira começou sem que Braulio tecnicamente ganhasse um tostão (é verdade que mais tarde ele recebeu uma “gorjeta” de 130 dólares da matriarca pelo serviço inesperado e bem feito).

E o que se passa hoje, seis anos depois? De bris em bris, de bar mitzvá a bar mitzvá, de casamento a casamento, Braulio Rocha não dá conta do recado. Este católico de 45 anos é o rei da comunidade judaica de Montreal, assediado por rabinos e clientes. Antes de chegar e conquistar a sinagoga Shaar Hashomayim, Braulio nunca tinha visto um judeu na vida. Agora, sua agenda está lotada até 2023. Ele tem uma equipe de oito pessoas e conseguiu até expandir o seu negócio para casamentos ultraortodoxos. Sua máquina antiquada foi substituída por um modelo de três mil dólares. Com os lucros, ele deixou um apinhado e pequeno apartamento alugado por uma casa de quatro quartos comprada nos subúrbios de Montreal.

Ele define sua trajetória como o “sonho canadense”. Ele dá crédito ao seu sucesso a um país tolerante e aberto a imigrantes, podendo assim repetir a saga das famílias da sinagoga, fundada em 1846 por imigrantes como Lazarus Cohen, que chegaram à América sem nada, fugindo de tudo quanto é tipo de infortúnio. A família Cohen ficou muito rica com sua cadeia de lojas e Lazarus é o tataravô do cantor Leonard Cohen.

O chazan da sinagoga, que contratou Braulio para fotografar o bar mitzvá do filho, ressalta que a história de um faxineiro que se reinventou é uma história essencialmente judaica, de acolher estranhos em uma terra estranha, uma história de Pessach.

Travessia à terra prometida

Antes da travessia para a terra prometida de Montreal, Braulio sofreu no seu Egito. Seu pai era um jornalista em Funchal (a capital da Ilha da Madeira) até o jornal ser fechado e depois fracassou na vida como vendedor de material de construção, tornando-se uma pessoa abusiva e violenta. Na escola, Braulio foi vítima de bullying e racismo, pois sua avó era negra. Seu escapismo era fotografar a natureza. Estava perdido na vida e se reencontrou no verão de 2012, quando deu de cara com uma moça andando de bicicleta. Era Sonia Ganança, que tinha emigrado para Montreal e estava visitando a ilha da Madeira.

Sonia retornou no dia seguinte para o Canadá e o namoro começou via Skype. Seis meses depois, ela propôs que ele se mudasse para Montreal e pagou a passagem de avião. Braulio pousou em Montreal sem falar uma palavra de francês e precisando encarar o inverno atroz de Quebec. Depois do casamento, a tia de Sonia, que trabalhava de cozinheira na sinagoga, descolou lá para Braulio o emprego de faxineiro.

Na entrevista ao New York Times, Braulio disse que se sentiu imediatamente em casa na sinagoga, acolhido em particular pelo significado espiritual do rito de passagem de um bar ou bat mitzvá. Chegava a parar de usar o aspirador de pó para escutar os cânticos do chazan Zelermyer.

Preces atendidas

E pelo visto, as preces de Braulio foram atendidas. Hoje ele chega a ganhar 8 mil dólares por empreitada, abriu um curso no Facebook para ensinar o seu ofício específico de fotógrafo de cerimônia judaica e até cogita da ideia de se converter ao judaísmo, mas hesita, pois sua família é muito católica. De qualquer forma, um velho hábito é irresistível. Quando Braulio checa um flagrante fantástico na sua máquina, ele exclama: Jesus Cristo!

E eu tenho mais uma história fantástica para contar sobre um personagem e também envolve bar mitzvá. Lá vai. Seu nome é Ed Shames e ele gostava de descrever o seu judaísmo como o de um “FDP durão”. E bota durão nisso. Quem já assistiu (no meu caso, inúmeras vezes) a minissérie Band of Brothers (HBO) vai entender muito bem. Shames era o último sobrevivente da lendária Easy Company, integrante de um regimento de paraquedistas americanos na Segunda Guerra Mundial, gente durona que saltou na Normandia no Dia D.

Shames morreu em casa em dezembro aos 99 anos. Ele inspirou uma das tantas cenas memoráveis de Band of Brothers. Ele esteve entre os soldados que no finalzinho da guerra tomaram o refúgio de lazer de Hitler nos Alpes austríacos. Shames se apossou de garrafas de conhaque para o consumo exclusivo do vilão. Além de durão, Shames era paciente. Ele esperou até 1961 para abrir uma das garrafas. A ocasião: o bar mitzvá do seu filho. Que fantástica retribuição judaica contra a figura bestial da Solução Final.

Ser criado judeu na costa do Estado da Virginia foi um duro treinamento para o futuro paraquedista. O garoto Ed respondia no braço quando era alvo de insultos antissemitas. Depois que os EUA entraram na guerra em 1941, Ed Shames se alistou e foi voluntário para integrar a tropa de elite. Eram sete mil voluntários para 2.500 vagas. Quase foi eliminado quando machucou o joelho no primeiro salto de paraquedas.

Ed se safou e antes de combater as tropas alemãs, precisou confrontar o antissemitismo de um oficial do Exército americano, quando organizou um Sêder durante treinamento na Inglaterra antes do Dia D. Ironicamente, outro vilão na vida de Shames foi um capitão judeu que treinou os soldados da Easy Company, num papel encenado pelo famoso ator David Schwimmer (Friends) em Band of Brothers.

Sobre o Sêder, Shames alistou 18 soldados judeus no regimento e quando escutou o comentário antissemita do oficial, ele não deixou por menos e deu o troco. Em uma entrevista anos atrás, Shames observou que poderia ter sido condenado em corte marcial pelo dito. Felizmente, nada aconteceu e Shames foi um herói na frente de combate. Nas entrevistas, ele sempre esteve à vontade para falar das garrafas de conhaque de Hitler, mas nunca sobre uma outra experiência. Ele foi um dos primeiros soldados americanos a entrar no campo de concentração de Dachau.

Ed Shames seguiu no Exército depois da guerra e se aposentou no posto de coronel. Ida, sua mulher, partiu pouco antes dele. Foi um casamento de 73 anos. Seu amigo Lee Kantor encheu a cara com o conhaque de Hitler no bar mitzvá do filho em 1961. Shames em seguida quebrou a garrafa e disse para Kantor que ela valia 15 mil dólares. Mas, é claro, que a celebração dos dois amigos judeus foi priceless.

Eu espero que os leitores tenham gostado dessas duas histórias para cima, a de Braulio Rocha e a de Ed Shames. Não sou chegado em resolução de ano novo e não posso prometer histórias tão animadas e reconfortantes ao longo de 2022. Será difícil, não é? A pandemia segue, teremos o perigo Bolsonaro na eleição brasileira e do trumpismo nas eleições para o Congresso americano, sem falar que o cenário na frente nuclear iraniana é sempre perturbador e nunca se sabe se a maravilhosa, miraculosa e frágil coalizão de governo em Israel vai sobreviver.

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