Mundo árabe dá um pequeno grande passo para aceitar Israel

Caio Blinder - Especial para a TJ

Com atraso, eu entro nas “novidades” diplomáticas no Oriente Médio, mas como o assunto é histórico, de certa forma, não tem hora para ser comentado. Antes de mais nada, um preciosismo. Israel não fechou um acordo de paz com os Emirados Árabes Unidos. Ocorreu um estabelecimento de relações diplomáticas.

Alguns já podem me questionar: pronto, lá vem o Caio, minimizando a importância do feito, apenas porque envolve os suspeitos habituais Netanyahu e Trump. Nada disso. Eu deixo claro que saúdo a iniciativa (aliás, Joe Biden não foi bobo e também aplaudiu).

E não vou negar o feito de Netanyahu, ressaltando que considero bem menor a importância de Trump (que, evidentemente, se acha no direito de faturar um Nobel, embora Jimmy Carter e Bill Clinton não tenham o recebido quando mediaram a paz no Oriente Médio).

O feito de Netanyahu foi vislumbrar e trabalhar no sentido de colocar a questão palestina em um plano secundário para o mundo árabe. Ele leu corretamente a geopolítica regional e investiu na questão que mais aflige o mundo árabe, a destacar a vizinhança sunita no Golfo Pérsico, que é a ameaça do Irã xiita, a destacar o seu programa nuclear.

Então, para delinear precisamente o cenário: mais do que o estabelecimento de relações diplomáticas, trata-se da consolidação de uma aliança de conveniência contra um inimigo comum. Obviamente, o reatamento de relações diplomáticas entre Israel e o terceiro país árabe (depois de Egito e Jordânia) abre oportunidades. E sabemos que o caminho é mais fácil para países mais distantes e que nunca se envolveram diretamente nas guerras.

O mero reatamento de relações diplomáticas cria este cenário de abertura comercial e parcerias, lembrando que contatos que ocorriam informalmente, agora poderão ter lugar de forma escancarada. O anúncio com os Emirados Árabes Unidos desponta apenas como o primeiro de uma série e o mais espetacular, sem dúvida, seria o reatamento de relações diplomáticas entre Israel e a Arábia Saudita.

Nada disso remove a importância da questão palestina, que pode ser abafada, mas nunca negada. No horizonte, não podemos vislumbrar nada promissor em termos diplomáticos. Antes de mais nada, precisamos esperar o resultado das eleições americanas, pois em caso de vitória de Biden, Netanyahu não terá o sinal verde para fazer o que bem entende.

E sobre Netanyahu em si, o feito histórico na diplomacia regional não parece alterar a encrenca doméstica. A sociedade e a política em Israel seguem imersas nos desafios internos, como a pandemia, a crise econômica e a dificuldade de gerar fatos que alterem justamente a paralisia política-eleitoral.

O Vaticano e o Holocausto

E agora, um assunto realmente velho, mas que tem novidades: o Vaticano e o Holocausto. A Santa Sé sempre insistiu que o Papa Pio XII fez tudo o que estava ao seu alcance para salvar vidas judaicas durante a Segunda Guerra Mundial.

Esta narrativa sempre colidiu com as denúncias, em particular de acadêmicos que estudaram a questão, de silêncio cúmplice do pontífice enquanto seis milhões de judeus eram mortos na época do nazismo.

Um dos acadêmicos mais entendidos no assunto, David Kertzer, professor de História da Brown University, nos EUA, explica que a lógica de Pio XII era não tomar partido na guerra, ficar neutro. E assim ele não poderia ser criticado por ninguém, inclusive pelos nazistas.

Kertzer já escreveu bastante sobre os papas e os judeus. Em 2015, inclusive, ele ganhou o Prêmio
Pulitzer por seu livro “The Pope and Mussolini”, rastreando a ascensão do fascismo na Europa. E agora ele tem muito para mais escrever.

Kertzer é um dos primeiros acadêmicos com acesso aos arquivos de Pio XII, abertos em março pelo Vaticano, após décadas de pedidos de outros acadêmicos.

Kertzer acaba de publicar suas conclusões iniciais em um artigo para a revista norte-americana The Atlantic. Os documentos divulgados, muitos manchados com linguagem antissemita, iluminam ainda mais o comportamento do papa na Segunda Guerra Mundial, a destacar diante do massacre de judeus pelos nazistas.

E há revelações muito específicas sobre o papel do papa para impedir que órfãos de vítimas do Holocausto fossem entregues a parentes. O historiador Kertzer descobriu dois documentos, revelando o intenso debate no Vaticano em 1943, quando os ocupantes nazistas de Roma apreenderam mais de mil judeus e os colocaram em uma academia militar a 300 metros da Praça de São Pedro, antes de os despacharem para Auschwitz.

Nas palavras do embaixador nazista no Vaticano, reportando para Hitler, a apreensão dos judeus ocorreu sob “as janelas” do papa. Somente 16 dos deportados sobreviveram.

A cumplicidade do papa pode ser explicada pelo histórico de antissemitismo da Igreja católica e em termos mais imediatos pela preocupação de não ofender milhões de católicos alemães que eram ardorosos partidários do nazismo.

Kertzer escreve que há uma questão que o papa nunca se mostrou disposto a responder: como milhões de alemães e seus aliados que participaram do Holocausto ainda se consideravam bons católicos?

Mesmo as revelações sobre a enormidade da tragédia depois da guerra foram insuficientes para alterar a mentalidade antissemita no Vaticano. Esta mentalidade foi apenas repudiada 20 anos mais tarde, em 1964, com o Concílio Vaticano II, quando a Igreja finalmente rejeitou a doutrina católica de que os judeus tinham sido os responsáveis pela morte de Jesus Cristo.

E é o diálogo entre judeus e católicos que permite que venham a público hoje os documentos sobre Pio XII.

Campanha democrata

E o terceiro assunto que eu trato nesta coluna é a nova estrela do judaísmo americano, Douglas Emhoff, o marido de Kamala Harris, a companheira de chapa de Joe Biden. A festa acabou e a campanha democrata colocou o simpático Emhoff para ganhar votos, no inevitável webinar nestes tempos de pandemia. Nenhuma surpresa que o local escolhido para o evento, embora tudo seja virtual, tenha sido a Flórida, que mais uma vez será um feroz campo de batalha eleitoral.

Emhoff é um proeminente advogado em Los Angeles (embora seja nova-iorquino). Tem filhos do primeiro casamento e Kamala chama a sogra de “momala”, num fácil e bem sacado trocadilho com seu nome e a língua ídiche.

No webinar, Emhoff lembrou dos laços da mulher com a comunidade judaica e com Israel (integrante do establisment democrata, ela é contra o boicote BDS apoiado pela ala mais radical e evidentemente a favor da solução dos dois estados).

Emhoff vendeu um tema essencial da campanha de Biden: Trump é incapaz de unir o país e é desqualificado para liderá-lo, recebendo o apoio de supremacistas brancos. Biden não precisa se preocupar com o alinhamento dos judeus americanos, por tradição eles são maciçamente pró-democratas.

É verdade que, apesar do apoio de supremacistas brancos, Trump também tem suas estrelas judaicas, figuras que no mínimo podemos chamar de polêmicas, como o primeiro-genro Jared Kushner, a filha Ivanka Trump e o assessor Stephen Miller, descendente de sobreviventes do Holocausto e responsável pela política linha-duríssima contra imigrantes (ilegais e legais), sem falar de doadores bilionários como Sheldon Adelson, amigo do peito de Netanyahu.

Quanto a Emhoff, em questão de semanas saberemos se voltará a advogar em Los Angeles ou ganhará o título de “segundo cavalheiro”, que pode ser meio caminho andado para a promoção a “primeiro cavalheiro” em pouco mais de quatro anos.

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize