Estamos de luto: 20 anos depois dos atentados de 11 de setembro

Caio Blinder - Especial para a TJ

Vinte anos depois dos atentados de 11 de setembro, várias vertentes do fundamentalismo islâmico têm motivos para festejar. Vamos começar pela festa mais escancarada.

O Talibã, companheiro de barbárie da rede Al Qaeda, festeja a reconquista do Afeganistão. Sim, o Talibã, apeado do poder semanas após os atentados de 2001, por ter abrigado os jihadistas.

Claro que aflige a agonia das mulheres e meninas afegãs que puderam se educar nos últimos anos, mas e daí? O “e daí?” basicamente é a atitude do mundo ocidental. Biden decidiu acelerar a retirada americana (e ocidental) do Afeganistão, consumando o desejo de Obama e arrematando o plano de Trump.

Foi um erro de cálculo estratégico e humanitário. Biden ainda aposta que não haverá maiores danos políticos e eleitorais com a indiferença da população americana diante da tragédia afegã (algo trágico, mas não a nossa tragédia). Sobre a parte política, provavelmente Biden está certo, embora a “perda” do Afeganistão já seja parte do seu legado e se configure como seu maior erro em política externa (até agora).

Posso me aventurar a dizer o que irá acontecer na frente doméstica (americana)? O cenário mais provável ainda é o acerto para Biden, apesar do horror de agosto. Os americanos vão esquecer o Afeganistão (embora o Afeganistão não irá esquecer o mundo). O cenário menos provável é Biden, de fato, ser um novo Jimmy Carter, com um agravante: marcado pela imagem de inépcia logo desde o começo do mandato.

O argumento estratégico de retirada é sobre a inutilidade de se manter em uma guerra sem fim naquele buraco conhecido como cemitério de impérios e a necessidade de se concentrar no longo embate contra a China. No entanto, parte do embate envolve valores.

E este mesmo Biden quer promover uma “cúpula da democracia” no final do ano para provar a superioridade moral dos EUA e dos valores ocidentais sobre o modelo chinês de violação intrínseca de direitos humanos.

Logo, a retirada acelerada é uma perda em todas as frentes para o mundo ocidental. Difícil visualizar uma mudança de rumo nesta “retirada estratégica” nas próximas semanas, embora devamos expressar a frustração, já que algum tipo de equilíbrio a um pequeno e sustentável custo de presença militar ocidental teria sido possível.

Claro que não seria a paz ou vitória militar, mas ao menos uma opção bem melhor do que que mais esta catástrofe humanitária e estratégica que assola o cemitério de impérios.

Fim de mundo

O estrago está feito naquele fim de mundo tão complexo. E aqui vai uma medida da complicação: contingentes militares ocidentais no perímetro do aeroporto de Cabul em agosto eram auxiliados por forças especiais do Talibã integrantes de uma de suas facções mais duras e bárbaras, a rede Haqqani, íntima da rede Al Qaeda e da inteligência paquistanesa. A rede Haqqani é definida como organização terrorista pelos EUA.

No Afeganistão, não existe círculo virtuoso, apenas o vicioso. Houve um tempo em que os americanos (na época de Reagan, mas na aproximação iniciada por Carter) compactuaram com grupos fundamentalistas muçulmanos que combatiam os ocupantes soviéticos (os mujahideens). Estes grupos deram crias como a rede Al Qaeda de Osama Bin Laden e o Talibã.

Não sabemos ainda qual será o status das relações dos EUA com o Talibã, de volta ao poder. Em termos informais, mesmo depois do trabalho conjunto nesta retirada atabalhoada e sangrenta da presença formal dos EUA da “guerra sem fim”, é possível que seja mantida uma aliança de conveniência para combater grupos ainda mais radicais e cruéis do que o Talibã, como o Estado Islâmico-K.
Em uma analogia histórica, seria uma aliança com Stálin para combater Hitler. A gente sabe como aquela guerra acabou: os nazistas perderam com a vitória dos aliados ocidentais e dos soviéticos. No Afeganistão, soviéticos e americanos (e seus aliados ocidentais) foram derrotados pela resistência local.

Sem dúvida, os EUA, que sempre tiveram uma atitude dúbia sobre seu status imperial. Não podem ser a polícia do mundo, cada vez menos, por sinal, diante da fadiga popular e o custo de intervenções nos últimos 20 anos como Afeganistão e Iraque. Sequer intervenções humanitárias impelem os americanos.

Agora, no Afeganistão, a sofreguidão humanitária basicamente foi para resgatar americanos e os afegãos que prestaram serviços nos 20 anos de presença no país. E mesmo estas tiveram o alto custo devido aos atentados terroristas praticados por fundamentalistas islâmicos. Tivemos imagens comoventes como a de uma fuzileira naval embalando um bebê dias antes de morrer no atentado suicida na entrada do aeroporto de Cabul, em meio ao desespero da multidão, desespero em grande parte provocado pela linha contínua do fiasco da retirada americana do Afeganistão pelos governos Trump e Biden.

Linha vermelha

E há pouco mais de oito anos, o regime genocida de Bashar Assad usou armas químicas contra civis em Ghouta, levando o então presidente Obama a renegar a promessa de que sua “linha vermelha” não seria cruzada com este crime contra a humanidade.

Existe uma linha direta conectando Ghouta a Cabul. As expectativas sobre o poder americano e suas promessas nunca mais serão as mesmas.

Quando a gente pensa no mundo árabe-islâmico, não falta desalento. Falando em Ghouta, a gente se lembra obviamente das esperanças da Primavera Árabe que murcharam. Mesmo num raro oásis, como a Tunísia, os incipientes ganhos democráticos são revertidos.

No geral, como eu disse, o mundo ocidental em meio a apelos retóricos, quer mesmo é cair fora dos rolos políticos que exigem opções morais no arco que vai da África do Norte ao Afeganistão. Não é possível é claro ignorar a realidade.

Ironicamente, Biden não reverteu a decisão de Trump de cair fora do Afeganistão, como no caso do acordo nuclear com o Irã, rasgado pelo ex-presidente. E será cada vez mais difícil costurar um novo acordo. Em Cabul, é a celebração do fundamentalismo islâmico sunita. Em Teerã, a festa é da linha ainda mais dura do regime teocrático xiita, que se enraizou mais profundamente no poder com a farsa eleitoral que levou Ebrahim Raisi à presidência.

E de pensar que o novo ministro das Relações Exteriores é conhecido por laços íntimos como o grupo terrorista libanês Hezbollah e o novo ministro do Interior é procurado pela Interpol por seu alegado papel no atentado terrorista contra a comunidade judaica na Argentina em 1994.

Sim, o general Ahmad Vahidi era o cabeça do braço internacional da Guarda Revolucionária (a Força Quds) na época do atentado em Buenos Aires, que causou a morte de 85 pessoas. O atentado foi empreendido por um terrorista suicida libanês a mando do Hezbollah, compactuado com a Força Quds.

O Brasil, claro, é distante de tudo isso. As discussões sobre política externa são provincianas e quando as questões envolvem os EUA e o governo Biden, as posições refletem muito o que as pessoas acham de Bolsonaro. Assim, não fiquei impressionado com o que li nas minhas redes sociais sobre a encrenca no Afeganistão.

De repente, abundaram os especialistas naquele buraco do mundo tão complexo, algo que lembra a abundância hoje em dia também de virologistas. Pouco a comentar, nada que decepcionasse, tudo conforme as expectativas.

No Brasil, em geral, são os habitantes do Bolsonaristão que se tornaram especialistas de última hora no rolo afegão, basicamente para tirar uma lasquinha do Biden e livrar a cara do Trump.

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