Enfeitiçada, política israelense não consegue se livrar de Netanyahu e de eleições

Caio Blinder – Especial para a TJ

A política israelense está amaldiçoada. Lembra o filme Feitiço do Tempo, em que o personagem vivido pelo grande Bill Murray acorda todo dia para vivenciar o mesmo dia.

Em Israel, em 23 de março foi a quarta eleição em menos de dois anos e de novo o Likud chegou em primeiro sem um resultado decisivo para formar um governo. E estamos aí com o feiticeiro Netanyahu no cenário. Embora conhecido como o Mágico, ele não conhece algum feitiço para mudar o da política israelense, que se repete, se repete, se repete e se repete.

Lendo noticiário sobre o feitiço eleitoral, bati com a frase célebre de Golda Meir. A ex-primeira-ministra e mãe fundadora de Israel, certa vez disse a Richard Nixon: “Você é o presidente de 150 milhões de americanos. Eu sou a primeira-ministra de seis milhões de primeiros-ministros”.

Era uma salada nos tempos de Golda, imagine agora com as divisões ainda mais profundas de acordo com fissuras religiosas, étnicas e ideológicas? O Knesset eleito em 23 de março é o mais rachado em décadas, 13 partidos ganharam assentos (e olha que ficou mais difícil faturar cadeiras).

Eu confesso que já acompanhei com mais atenção o ensopado político de Israel, hoje simplesmente perdi a noção de quem é quem com os rachas, fusões e troca de nomes dos partidos. Claro que foi assim desde a fundação do país, mas a fragmentação ficou mais acirrada.

Uma rápida vasculhada no baú: o Partido Trabalhista foi formado com a fusão de vários movimentos do sionismo socialista e foi a principal força para a criação do estado de Israel sob o tacão de David Ben-Gurion, controlando o jogo até as eleições de 1977.

Hoje o Partido Trabalhista amarga seu longo declínio e há momentos em que parece que irá desaparecer de cena. Seu rival histórico, o Likud, que remonta ao revisionismo de Zeev Jabotinski, também já viveu dias mais gloriosos.

Sem dúvida, estas grandes forças ideológicas em Israel sempre tiveram lideranças carismáticas e personalistas, como Ben-Gurion, Jabotinski e Menachem Begin. Mesmo o pai fundador Ben-Gurion teve suas idiossincrasias, como rachar com o próprio Mapai, o pilar do Partido Trabalhista.

No final da vida, ele chegou a estar alinhado com o Likud. Dos generais que invadiram a política, Rabin foi mais consistente na lealdade aos trabalhistas do que Moshe Dayan e Ariel Sharon, que circularam na farra partidária.

Ideologia costuma ir para a cama em Israel com o fisiologismo e o oportunismo. Basta ver os outros grandes movimentos políticos. Os partidos religiosos costumam ser fiéis da balança e por décadas o Partido Nacional Religioso não teve problema em integrar os governos chefiados pelos trabalhistas. Hoje, nem pensar, está alinhado com a direita.

De novo, não é apenas oportunismo, mas a fragmentação partidária obviamente é reflexo da fragmentação do país. Hoje, à esquerda do moribundo Partido Trabalhista, há esquerdistas sionistas, comunistas e vários partidos que representam o cidadão de origem árabe. À direita do Likud, estão vários partidos que exigem jogo duro com os palestinos, mas alguns igualmente furiosos com o poder dos partidos religiosos.

E há o centrão, hoje capitaneado pelo Yesh Atid, de Yair Lapid, que investe no ressentimento com os partidos tradicionais (e religiosos) e está mais empenhado em mudanças socioeconômicas do que na questão palestina/territorial. Os próprios partidos religiosos estão divididos por etnia e tonalidades na ortodoxia.

Fragmentação eleitoral

Hoje, como eu disse, ficou mais difícil entrar no Parlamento (o partido deve ganhar no mínimo quatro cadeiras), mas um país, com a complexidade de Israel, ter adotado a pura representação proporcional iria pagar um preço cada vez maior. O estado de Israel vive em estado de fragmentação eleitoral e instabilidade política. Manter uma coalizão de governo é um sufoco e a fragilidade do sistema é a alma do negócio.

Há profundas ironias no diagnóstico. Israel sempre se orgulhou de ser um cartão postal da democracia no Oriente Médio, um oásis no deserto de ditaduras (nem vou entrar no mérito aqui do status dos palestinos), mas hoje em dia o ponto mais saliente sobre a democracia israelense é ser disfuncional e instável.

Por muito tempo, a questão palestina e das fronteiras provocava os rachas mais intensos e passionais. Este debate perdeu a intensidade, pois em política externa e na questão palestina, houve uma guinada indiscutível para a direita com a perda de fé no Partido Trabalhista para negociar terra por paz na busca de um acordo duradouro com os palestinos.

E aqui outra ironia: setores da direita deram uma amolecida. Basta ver que o falcão Sharon, quando era primeiro-ministro do Likud, decidiu pela retirada unilateral de Israel da faixa de Gaza em 2005. Ele rachou com o partido e criou um grupo mais centrista, o Kadima. Por uns tempos, o Likud ficou nanico, mas aí o Kadima escorregou e o Likud cresceu novamente.

As ironias amargas não acabam. Netanyahu nunca foi um gigante, nunca teve a estatura de figuras dos tempos da formação do estado como Ben-Gurion e Begin. Ele tampouco chega aos pés de antecessores mais recentes como Rabin e Sharon. No entanto, conseguiu transformar o Likud em um partido de seus devotos. Netanyahu concretizou a proeza de ser o mais longevo primeiro-ministro, superando Ben-Gurion. A outra proeza foi ter sido primeiro ocupante do cargo a ser julgado por corrupção.

No mais recente ciclo eleitoral (dos últimos dois anos), a grande linha divisória foi o próprio primeiro-ministro provocando novas cisões dentro do Likud, com o país assolado por este racha sobre as acusações de corrupção e o estilo autocrático de Netanyahu. Para os devotos, Rei Bibi. Para os demais, um mero caudilho.

Mágico e loser

Há uma situação bizarra: Netanyahu não larga o osso em grande parte pelas divisões da vasta oposição. E não dá para entender a cabeça dos seus próprios devotos: no final das contas, ele se revelou um loser neste longo ciclo eleitoral.

Netanyahu é mágico, pois vence mesmo quando perde. E apronta alguma quando está para perder o cargo. Tinha feito um acordo de rodízio no poder com Benny Gantz, do centrista Branco e Azul, mais uma esperança do novo na política que desvaneceu. Netanyahu melou o acordo e o país foi conduzido para a eleição de 23 de março.

Meu cinismo é priceless sobre Netanyahu. Não vou discutir seu patriotismo, mas quem vai negar que componente essencial na sua obsessão para ficar no poder é garantir imunidade parlamentar ou descolar alguma lei que livre a sua cara?

Nem mesmo a maníaca habilidade de Netanyahu para tornar a população israelense uma campeã de vacinação na pandemia conseguiu virar o jogo. Existe prova maior que ele é um produto expirado e que não faz sentido outra rodada de conchavos para mantê-lo no poder?

Bem, eu tomei uma overdose de ironia neste texto e vou arrematar com mais uma. Netanyahu não tem mais como virar o jogo ou dar as cartas, mas nenhum partido ou personalidade hoje tem este capital.

Escrevo uma semana depois da eleição. Um governo talvez até seja formado, mas a aposta na sua sobrevivência é pequena. Eu aposto uma cópia do filme O Feitiço do Tempo que dia menos dia, nos próximos meses, a quinta eleição será convocada, pois as divisões são cada vez mais profundas e o impasse mais complexo em Israel.

Vamos apenas esperar que Israel não fique eternamente enfeitiçada na incapacidade de construir um sólido governo. E, sem dúvida, basta de Netanyahu. Cadê a vacina contra ele?

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