Em pleno século 21, Nova York se torna um grande shtetl, palco de agressões antissemitas


Como residente na região metropolitana de Nova York há mais de 25 anos, obviamente eu estou cercado de judaísmo, mas nunca me senti acossado por antissemitismo de carne e osso (não falo do gênero virtual). O mesmo não posso dizer de tanta gente na minha vizinhança de dezenas de milhões de pessoas.

Eu já comentei aqui que agora vivo em um subúrbio de New Jersey, pertinho de Manhattan, chamado Englewood, com alta incidência de judeus ortodoxos, em sua imensa maioria modernos – ao contrário do que vemos em alguns enclaves ultra-ortodoxos da área metropolitana de Nova York.

Em termos de convivência diária, eu não tinha estado de companhia de tantos judeus visíveis desde os tempos da minha infância no Bom Retiro, com homens de kipá na cabeça e mulheres vestidas discretamente. E são tempos de alta ansiedade para o que podemos chamar de “judeus visíveis”. Muito recentemente, em Teaneck, subúrbio vizinho ao meu (ainda mais visivelmente judaico), uma suástica foi pintada na fachada de uma loja.

Em uma desgalhada, eu tive uma experiência comovente em Teaneck. Na rua principal da cidade-subúrbio, há um velho cinema, daqueles clássicos, pequenos, que contrastam aos telões de cinema de shopping, com ingresso baratinho para a matinê. Eu apareci no cinema na segunda-feira à tarde, logo após saber do incidente com a suástica.

E o que havia de especial naquele dia, 27 de janeiro? Eram os 75 anos da libertação de Auschwitz. E o impacto da experiência não acaba por aí. Eu fui justamente assistir a Jojo Rabbit, filme indicado para o Oscar, que é uma paródia do nazismo. E naquela matinê estavam na sala de cinema o Mr. Blinder e um público pequeno, mas majoritariamente judaico, com gente de kipá na cabeça.

Eu me senti em casa, com minha gente, com meu povo. Eu me senti orgulhoso. Num toque de leveza, confesso que sai do cinema e fui celebrar a sobrevivência do povo judeu comendo um bagel em uma fantástica déli casher.

No entanto, vamos voltar para as más notícias de antissemitismo, 75 anos depois da libertação de Auschwitz. Incidentes mais frequentes e mais graves estão tomando conta de enclaves judaicos mais conhecidos de brasileiros, como Crown Heights, no Brooklyn. Estudantes rabínicos, ou seja, judeus chassídicos muito visíveis têm sido agredidos nas ruas.

Há muito tempo não eram registrados tantos incidentes antissemitas como agora. Dois casos gravíssimos tiveram lugar relativamente perto da minha casa. Em Jersey City, vibrante cidade multiétnica à beira do rio Hudson, na margem oposta a Manhattan, foram três pessoas baleadas (e mortas) em um supermercado casher. Em Monsey, Nova York, cinco pessoas foram esfaqueadas na casa de um rabino.

A ansiedade está disseminada pelo país. Sinagogas de correntes diversas do judaísmo têm sido vandalizadas, na sequência dos atentados mortais nos templos em Poway, Califórnia, em abril passado, e em Pittsburgh, na Pensilvânia em 2018.

Taxa da segurança

Há histórias desoladoras de sinagogas, escolas e centros comunitários judaicos que precisam tomar decisões atrozes: destinar dinheiro para a reforma de um prédio dilapidado ou investir em segurança diante da ameaça de ataques antissemitas? Existem verbas federais e estaduais para reforçar a segurança de instituições, mas elas são insuficientes diante da demanda.

A sinagoga de East Midwood, no Brooklyn, foi forçada a cobrar uma taxa de 100 dólares de seus membros para a segurança. O templo paga 250 dólares a cada sábado para ter um segurança no serviço religioso. É o preço de bem-estar para as 100 pessoas que aparecem no Shabat. A taxa de 100 dólares será insuficiente para cobrir os custos para a compra de novas câmaras de vigilância (20 mil dólares) e outras despesas urgentes.

A urgência de reformas foi adiante nesta sinagoga no Brooklyn, fundada há 97 anos e que já foi incluída no registro do patrimônio histórico nacional e de Nova York, uma referência tão forte que ela serviu de locação para a premiada série The Marvelous Mrs. Maisel, da Amazon Prime Video.

No entanto, a violência nas ruas evidentemente é mais ameaçadora para os judeus visíveis. Somente na cidade de Nova York, vivem mais de um milhão de judeus e centenas de milhares deles são ortodoxos, sejam modernos, sejam chassídicos. Nova York se tornou um grande shtetl, palco de agressões antissemitas.

De acordo com dados da polícia, no ano passado, judeus foram vítimas de mais da metade dos 428 crimes de ódio registrados na cidade. Não há uma identificação específica sobre a corrente judaica da vítima, no entanto, não é preciso ser um Sherlock Holmes para concluir que os alvos preferenciais destes crimes de ódio são judeus ortodoxos.

Como eu disse, muitos dos incidentes têm ocorrido em partes do Brooklyn que têm sido a casa de judeus por gerações, como Crown Heights e Williamsburg. Ironicamente, Williamsburg é um lugar cool hoje, onde se supunha uma tolerância extremada.

Um casal de judeus brasileiros altamente assimilado comentou comigo que reassumiu sua identidade judaica com o que está acontecendo no Brooklyn. E não é por menos, com esta incidência de ataques. Imagine, uma mulher ortodoxa caminhando pela rua e de repente sua peruca é arrancada?

Líderes comunitários dizem que a violência antissemita nos EUA agora permite paralelos com a onda na Europa, marcada por ataques, tanto de supremacistas brancos, como de jihadistas. Como observou o rabino David Niederman, presidente das Organizações Judaicas Unidas de Williamsburg e do Norte do Brooklyn, “a gente pensava que estas coisas aconteciam na Europa e que nunca aconteceriam nos EUA, muito menos na cidade de Nova York”.

Supremacistas brancos foram responsáveis por alguns ataques hediondos nos EUA, como o caso da sinagoga de Pittsburgh, em 2018, mas há uma diferença em relação ao que ocorre na Europa. Na região metropolitana de Nova York os responsáveis pelos casos mais graves não foram nem supremacistas brancos nem jihadistas, mas jovens negros.

Uma das explicações é tensão urbana, entre as comunidades judaica e negra mais pobre, ambas vítimas do processo de gentrificação, que basicamente significa valorização imobiliária em uma região decadente. Famílias são forçadas a sair do seu bairro e vizinhança, pois não dão mais conta do custo de vida. Judeus mais pobres que viviam congregados em áreas valorizadas do Brooklyn estão atravessando o rio Hudson para Jersey City e lá ocorre a colisão cultural e social com residentes negros.

Esforços de coexistência comunitária e educação mitigam o problema. No final do ano passado, quando se agravaram incidentes antissemitas, a Liga de Antidifamação expandiu os programas de educação contra o preconceito, iniciados no Brooklyn em 2018. A meta é atingir 40 escolas da região.

Infelizmente, os remédios não acompanham a velocidade de alastramento do vírus. Não podemos esquecer os tantos incidentes e agressões que sequer são reportados para as autoridades.

Há relatos de incidentes aparentemente banais no metrô de Nova York em que pessoas com kipá são tratadas de forma agressiva e submetidas a arengas sobre judeus se comportando como raça superior ou empenhados em dominar o mundo.

Os judeus não querem dominar o mundo. Quanto aos judeus em Crown Heights, centro da vida chassídica em Nova York há um século, a ambição é resistir, ficar lá, apesar da gentrificação e dos incidentes antissemitas. A ambição maior talvez seja meramente o direito de ser um judeu visível.

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