A saga de dois judeus de Nova York, a ambição do mal e a luta pelo bem

Caio Blinder – Especial para a TJ

Como se dizia nos velhos (e nem sempre bons) tempos: parem as máquinas. Depois de um tempão, aqui vai uma coluna que ignora Netanyahu, Trump e a pandemia. Não vou sequer falar de coisas vivas, vou apenas falar de mortos, será um texto de obituários.

Então, vamos mandar bala, começando com a biografia recém-lançada sobre Bugsy Siegel, de Michael Shnayerson. Está aí um gângster vistoso e letal, não exatamente orgulho da raça, mas que, como tantos outros, exerceu um fascínio também fatal sobre Hollywood.

Na verdade, devemos agradecer ou maldizer Hollywood pela fascinação do distinto público com gângsteres. A indústria de cinema sempre soube elencar atores plausíveis e estupendos para o papel de canalhas como Al Capone.
Benjamin “Bugsy” Siegel era bonitão e charmoso. Caso tivesse sido retratado nos seus tempos, ele seria representado por atores como Cary Grant ou Clark Cable. Ironicamente, estes atores eram convidados na sua mansão em Los Angeles. No final das contas, ele acabou em boas mãos, num filme tardio, Bugsy, em 1991, com Warren Beatty.

Bugsy não teve vida longa (1906-1947). Ele cresceu no Lower East Side, em Nova York, como muitos imigrantes e filhos de imigrantes judeus da Europa Oriental. Como escreve o biógrafo Shnayerson, “este shtetl americano com mais de um milhão de pessoas era mais apinhado do que Bombaim, na Índia.”

As oportunidades para se dar bem na vida eram miúdas no Lower East Side, exceto para aqueles dispostos a investir naquilo que Shnayerson alcunha de “capitalismo gângster”. O pai de Bugsy era um daqueles coitados nas multidões de imigrantes que trabalhavam horas a fio em fábricas têxteis em condições insalubres. Ainda garoto, Bugsy largou a escola para ajudar a sustentar a família e o trabalho escolhido não foi convencional.

Aos 12 anos, ele já estava no ramo de extorsão. As vítimas eram camelôs judeus que arrastavam carrocinhas pelas ruas de Manhattan. Quem não pagava pela proteção, tinha a carrocinha queimada. A extorsão também fulminava os condutores de charrete. E aqui, a punição era o envenenamento do cavalo. Falando em animais, o garoto Bugsy agia simplesmente sem medo. Seu apelido em ídiche era “chaye”, uma besta, um animal selvagem.

O poderoso chefão

Na escola da rua e do crime, ainda moleque, Bugsy encontrou um vizinho, um adolescente de 16 anos chamado Meyer Lansky, este sim o poderoso chefão entre os gângsteres judeus americanos no século 20, inspiração de um dos grandes personagens da trilogia de Coppola, com o lendário Lee Strasberg no papel de Hyman Roth. Na vida real, Lansky foi um dos mentores do crime organizado nos EUA.

Com o início da Lei Seca, em 1920, Lansky e Siegel se tornaram prósperos, eficientes e implacáveis homens de negócios do capitalismo gângster. Império do Crime (1991) é um filme que romanceia esta parceria dos dois, ao lado dos gângsteres ítalo-americanos Charles “Lucky” Luciano e Frank Costello.

Aos 21 anos, Bugsy era um homem rico e assim podia sustentar sua família, inclusive pagando a faculdade de medicina para um irmão mais novo. A família se envergonhava da profissão do bem-sucedido jovem, mas aceitava o seu dinheiro.

Os negócios floresceram de forma estupenda durante a Lei Seca. A dupla Lansky/Siegel era campeã no contrabando de uísque, em particular do Canadá, superando até Al Capone, que atuava em Chicago. Cenas clássicas do filme Intocáveis mostram o comércio na fronteira canadense.

Gângsteres visionários, Lansky e Siegel entraram em 1931 no negócio de fusões, consolidando o crime organizado. Ao lado de bandidos como Lucky Luciano, fizeram a junção com outros poderosos chefões de gangues judaicas, italianas e irlandesas para criar um “Sindicato” multiétnico. A ideia era minimizar o banho de sangue e maximizar os lucros.

Nesta altura do capitalismo gângster, as atividades se alastraram pelo jogo e indústria têxtil. Para calibrar a violência, o “Sindicato” não dava mole com seus pistoleiros. Siegel gostava de dar conta sozinho do recado.

No livro, o biógrafo Shnayerson pergunta se Siegel, imerso em atrocidades, era um sociopata ou um megalomaníaco? Difícil resposta.

Vidas judaicas

A biografia faz parte da série “Vidas Judaicas”, editada pela Universidade de Yale, e assim o contexto judaico é intenso no livro.

Siegel não frequentava sinagoga, mas seu casamento em 1929 foi oficiado por um rabino e mais para o final da vida, ele deu uma pequena fortuna para financiar a luta sionista. Há relatos bizarros sobre este contexto cultural. Um dos pistoleiros de Lansky e Siegel era o judeu ortodoxo conhecido como Red Levine. Ele fazia o possível para não cometer assassinato no Shabat, mas caso não houvesse alternativa, ele beijava a mezuzá, rezava e mandava bala.

Mas, no trocadilho infame, a religião de Siegel era ganhar dinheiro. Guiado por Lansky, Siegel visitou Los Angeles em 1931, buscando novas oportunidades para aumentar seu patrimônio. As portas foram abertas por um amigo de Nova York, George Raft, um gângster que se tornou ator em Hollywood. Siegel se tornou figura influente no esquema de cassinos, construiu uma mansão e passou a oferecer festas nababescas.

Tinha intimidade com atores e celebridades. Jean Harlow foi madrinha da filha e Frank Sinatra integrava o seu círculo social. Siegel podia até ser um sociopata, mas seduzia com seus modos educados, ternos caríssimos e seu charme. Apenas o lendário James Stweart resistiu ao assédio e mandou Siegel para o inferno. Cary Grant advertiu Stewart que não era por aí: “Veja, Jim, o cara é amigão de George Raft e se George diz que Benny quer você como amigo, seja amigo dele”.

Em roteiro de filme, Siegel se apaixonou por Virginia Hill, parceira de outro gângster, que, desolado, se matou.

Tomado pela ambição, ele investiu em Las Vegas e a operação no Hotel Flamingo foi um desastre financeiro, enfurecendo o Sindicato.

Na noite de 20 de junho de 1947, Siegel tomou cinco tiros enquanto estava sentado na sala da casa de Virginia Hill em Beverly Hills. Não se sabe quem o matou. Shnayerson sugere que Virginia Hill esteve envolvida e conclui que Benjamin “Bugsy” Siegel foi morto por sua própria ambição.

Mulher fantástica

E vamos finalizar com outro obituário, este de uma mulher fantástica, longe do crime, integrante do sindicato do bem. Em fevereiro, Naomi Levine faleceu aos 97 anos. Ela foi a primeira mulher que comandou uma grande organização judaica nos EUA, além de ser decisiva para transformar a New York University em uma das melhores do mundo.

Naomi Levine nasceu no Bronx e estudou Direito na Universidade de Columbia. Ativa desde os anos 1950 no American Jewish Congress, ela participou da luta contra a segregação racial. Em 1963, Naomi Levine foi co-autora do discurso do rabino Joaquim Prinz, pronunciado pouco antes do “I Have a Dream”, de Martin Luther King, em um dos grandes comícios da mobilização pelos direitos civis, em Washington.

Ela realmente ganhou visibilidade em 1972 quando se tornou diretora-executiva do American Jewish Congress. Após deixar o cargo em 1978, Naomi Levine liderou a arrecadação de fundos para a expansão da New York University.

Aposentada na Flórida, até recentemente ela fazia palestras para incentivar mulheres a se libertarem de uma vida banal.

A vida de Naomi Levine não teve nada de banal. Seu marido Leonard Levine, que faleceu em 2001, participou do desembarque da Normandia, no Dia D. Casal do bem.

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