Memorial do Holocausto lembra o bairro do Bom Retiro

Da Redação

Uma live diferente de todas as outras, assim foi o encontro que abordou “Mais de um século de Bom Retiro: a memória judaica contada pelos ingales”. Rabino Toive Weitman, diretor do Memorial do Holocausto, fez a introdução e passou a coordenação para Marcio Luftglas, um dos “ingales”, denominação carinhosa de meninos em ídiche. Perguntas e respostas, emoções e divagações, este texto segue a forma da linguagem coloquial usada durante mais de uma hora pelos participantes.

Marcio Luftglas: Minha primeira pergunta é como você teve a benção de, um dia, chegar ao Bom Retiro?
Marcos Arbaitman: É uma benção. A Pró Matre foi onde minha mãe deu a luz. Ela tinha fugido dos pogroms da Rússia, de Kiev, meu pai fugiu da Polônia, estudava na Ieshivá, em Lublin. Casaram no Brasil e tiveram três filhos, sou o caçula. Na Rua Newton Prado, atrás, tinha a Rua Tocantins, hoje Beit Chabad, e a escola Talmud Thorá; ficamos em melhores condições e nos mudamos para a Tocantins. Recentemente, tivemos o privilégio de doar um novo Sefer Torá, feito em Jerusalém por um jovem, filho da minha irmã. O Bom Retiro tá na alma da gente, ninguém pode dizer que saiu do Bom Retiro, nunca vamos sair, pela imagem positiva que tinha. Jogávamos bola, atrás era o Clube Amazonas, já era a Várzea, tinha o Rio Tietê.
Nós jogávamos bola na Rua Newton Prado e, depois das seis e meia da manhã, íamos até a Rua da Coroa, no Macabi, um lugar alugado. Íamos caminhando até lá, porque não tinha ônibus. Eu tinha 16/17 anos, um dia vieram dois senhores, David Kopenhagen e Samuel Back, este fabricava plásticos e o outro vendia, numa cesta, marzipã que a esposa fazia, e acabou fazendo a maior fábrica de chocolate e melhor do mundo. Eles ajudavam a gente até o ponto em que nos disseram: “Não pudemos ficar no aluguel e fomos na Avenida Cantareira 4.128 para comprar uma área de quase dois milhões de metros, do Cotonifício Guilherme Jorge”. E ali está o Macabi, que fez aliança com o Círculo. De lá, o Jacob Kauffmann me chamou para ser diretor de esportes na Hebraica e o meu sogro, querido e amado Manoel Epstein z’l, era o sócio número 1, porque os dez primeiros fundadores do clube sortearam entre eles e ele ficou com o número um. Antes de falecer, ele me disse “minha herança para você é o meu título de sócio”. Quando chego no clube e a funcionária pergunta meu número, ela diz “não brinca, um rapaz tão jovem não pode ser o número 1”.
Milton Wajman: Meu avô paterno chegou aqui nos anos 1920. Em 1929, meu pai veio com os irmãos e minha avó direto para São Paulo. Eles viviam num shtetl de 200 famílias, hoje na Bielorússia. Lá a situação era muito difícil, muito pobre. São Paulo abraçou os judeus, o Brasil abraçou os judeus. Ai meu pai começou a trabalhar, pois só um filho podia estudar, se formar, não havia dinheiro para os estudos de todos. Meu pai acabou ajudando meu avô a pintar prédios, na parte externa, inclusive trabalhou numa construtora, a Stuhlberger. Assim foi crescendo. O lado materno é da Polônia, meu avô também veio antes, depois de alguns anos ele chamou minha avó, que tinha uma filha e vieram para Salvador, Bahia. Em 1930, minha mãe nasceu e assim foi até mais ou menos 1950. Minha mãe veio visitar a irmã, que morava em São Paulo, encontrou meu pai e se casaram. Minha mãe era pianista; mas meu pai era do trabalho braçal. Aí começou uma construção muito bonita. Minha mãe arregaçou as mangas e ajudou meu pai, construíram uma fábrica de roupas femininas. Acabei nascendo, após cinco anos, pois a vida era muito difícil… mas agradável.
Leon (Leo) Ciobotaru: Meu pai nasceu na Bessarábia, minha mãe em Erexim, Rio Grande do Sul, fugida da Polônia, dos pogroms. Ela chegou com meu avô, ele pensando que o Rio Grande do Sul era São Paulo. Meu pai nasceu na Romênia, na 2ª. Guerra Mundial foi para o campo de concentração, teve o Maguen David no peito, saiu do campo e foi para Israel. Ficou preso em Chipre. Depois, na época da Guerra da Independência, ele estava em Israel. Se ficar em Israel, você vai morrer, porque os oficiais vão na frente, disseram pra ele. Chegou com o irmão dele. Casou com a minha mãe. Pegaram a harmônica, que se chamava de sanfona, ficavam cantando em ídiche. Meu pai me fez aprender idiche. Estou muito emocionado.
Frequentei o Renascença até o segundo ano primário. Me convidaram a se retirar por bons modos. Meu pai me levava ao Pletzale, na esquina das ruas Correa de Mello e da Graça. Andei muito de bicicleta, frequentei a Livraria Weltman. me formei na Getulio Vargas, entrei no mercado financeiro, até hoje….
Marcelo Broit (Batata): Emocionado. Meu pai era polonês, conseguiu sair no último navio com meu avô, a mãe dele e meu tio. O resto da família perdemos no campo de concentração. O navio parou em Nova York, meu tio quis ficar lá, veio meu pai e ficou na Argentina, lá ele conheceu minha mãe, se casaram. Vieram para o Brasil. Em 30 de junho de 1964 tive essa sorte de cair no Bom Retiro. Só coisas boas, o que posso falar do Bom Retiro, a maior alegria que eu tenho são os meus amigos, que continuam sendo meus melhores amigos do Bonra, do Hashomer Hatzair, do Renascença, onde estudei. Tive a honra de estudar no Talmud Thorá, é a minha base do judaísmo. Também sei falar ídiche, só coisas boas, o Mechale, o Pletzale, o Leibl da Mercearia.
Max Waintraub: Nunca sai do Bom Retiro. Nasci em 1976, morei na Rua Jaraguá, na frente da Delegacia de Policia, num prédio que nem elevador tinha. Depois, a gente melhorou um pouco de vida, fomos para um edifício na Rua Afonso Penas 352 e, daí alguns anos, fomos para Higienópolis. Meu pai teve um escritório de contabilidade, a verdade é que meu coração nunca saiu do Bom Retiro. Lembro bem o grande sonho do meu pai (era o Careca, pra quem conheceu, z’l), ele gostaria de voltar a morar no Bom Retiro, com tudo que passamos. Nunca falava em Nova York ou Jerusalém, o desejo era voltar para o Bom Retiro. Tô no Bom Retiro trabalhando na Rua Lubavitch, tive a oportunidade de mudar pra outro bairro, mas não quis. Tive a honra de dirigir o Renascença mas o desprazer de ter que fechar, infelizmente, a unidade Bom Retiro por falta de alunos. Uma coisa que doeu muito no meu coração, mas era uma necessidade.
Marcio Luftglas: Mãe polonesa, saiu da Polônia em 1939. Meu avô veio primeiro, com uma mão na frente e outra atrás. Quando ele saiu, minha mãe tinha seis anos e minha avó estava grávida. Demoraram dois anos para meu avô juntar documentos, passaportes e dinheiro para trazer as três. Chegaram em 1939, direto para o Bom Retiro. Meu pai nasceu em Kalwaria Zebrzydowska, do lado de Cracóvia, a cidade do Papa João Paulo II. Meu pai perdeu pais, quatro irmãs, um irmão, passou por várias circunstâncias. Após o holocausto, lutou na guerra da independência em Israel. Quis o destino que viesse para o Bom Retiro, conhecesse uma polonesa, casassem, tivessem três filhos, seis netos, quatro bisnetos, indo para o quinto. Poucas vezes ele saiu do Brasil. Uma vez visitou Israel, em 1986, adorou. Quando voltou, ele pisou no aeroporto, ajoelhou e beijou o chão do Brasil. Disse que aqui era a terra dele e isso todos os imigrantes, seja venezuelanos, haitianos, sírios, africanos, todos encontraram aqui um abrigo.

Marcio Luftglas: Qual a sua experiência mais emocionante como líder comunitário judaico e como uma criancinha que brincava nas ruas do Bom Retiro?
Marcos Arbaitman: Como garotinho franzino, a gente tinha um timinho de futebol lá na Rua Tocantins e, quando não tinha trânsito, nós jogávamos bola. A bola era de meia, de pano, nós não tínhamos recursos pra comprar uma de couro, e havia um grupo de jovens que morava no bairro, proveniente da Lituânia, que vinha agredir aquele grupo meio fraquinho. A gente apanhava mais do que batia. O que fizemos: fomos à Ofidas, na Rua Jorge Velho, hoje a Unibes. Lá havia o professor Waldemar Zumbano e fomos aprender box. A gente lutava pra poder aprender a nos defender e, depois, porque às 17h30 ele servia um chá e um lanche.
A maior emoção que passei: eu trabalhava muito no Macabi, depois na CBM-Confederação Brasileira Macabi, depois na Latino-Americana e ia a Israel nas reuniões, nunca faltei, no Macabi Mundial. Era Gilberstein e um grupo inglês que comandava. Aos 94 anos, ele cansou e o presidente Yisrael Peled diz pra mim, “assume”. A primeira missão era visitar os países da União Soviética, porque (Mikhail) Gorbatchov abrira a Perestroika e os judeus tinham direito de ir à próxima Macabíada, em Israel. Eu e a Bete, minha esposa, viajamos 12 dias por todos os países da região e em cada um incitávamos os jovens para que participassem da Macabiá. Um dos jovens, no Shabat, veio com um lenço na cabeça e me disse: “você poderia nos arrumar quipot (solidéus), não temos para rezar”. Aí enviamos 1.500 quipot.

Marcio Luftglas: Quais memórias que remontam à época que você morou no Bom Retiro?
Milton Wajman: Na verdade, a gente só pode agradecer, principalmente, lembro das memórias que me remontam a valores. As famílias dando valores, isso mostra que, no passado, todo mundo trabalhava muito forte, firme e alcançava os objetivos, não tinha uma pessoa que abaixava a cabeça e isso me remonta muito ao Bom Retiro.
Quando nasci, morei na Rua Anhaia, esquina da Rua Julio Conceição, não tinha elevador. Na frente tinha a Neofarma, um laboratório e sempre, às 11h, tocava uma sirene para os funcionários irem almoçar. Isso me marcou muito. Do lado passava o trem, meu quarto era praticamente do lado, imaginem o barulho o tempo todo. Lembro com carinho do Scholem Aleichem, a escola onde fiz o primário, doces lembranças. Acabando as aulas, a gente sentava na soleira do Taib (Teatro de Arte Israelita Brasileiro) e ficava batendo bafo. Às vezes tinha os mais fortes e, mesmo sem bater, tinha que perder ou dar as figurinhas pra eles.
Lembro do Pletzale. Os pais pagavam as contas na Cooperativa (de Crédito do Bom Retiro) ou em outro banco às 10h da manhã e, aí, iam pra esquina da Rua Correa de Mello com Rua da Graça. Lá era o centro de muitos negócios, lá era o Instagram, o Facebook, tudo. Meu pai falava que pra ir pro Pletzale tinha que estar sempre com a cabeça erguida. Porque não podia ser um cara que devia pro outro. Quando meu pai fechou a loja e a fábrica, teve que fechar sem ter dívida, porque não podia ir ao Pletz tendo dívida. Isso não seria bom.
Pra sair do Bom Retiro e ir pra Hebraica, primeiro tinha que ir a pé até pegar o trólebus, subia a Rua José Paulino inteira. O trólebus subia e descia a Rua Augusta e vivia caindo o cabo. Ele parava em frente onde é hoje o Shopping Iguatemi, daí ia a pé até a Hebraica. Lá ficávamos o dia todo, depois fazíamos o caminho inverso.
Marcelo Broit (Batata): Agora com 59 anos me perguntam por que você não é pão (broit)? Batata é em homenagem ao shwartze broit (pão preto) da Padaria da Bela, lá perto do Restaurante Europa? Muita gente me perguntava qual o meu nome. Vou contar meu segredo de tantos anos. Quando cheguei no Bom Retiro, com três anos, logo entrei no Talmud Torá. Nós morávamos na Tocantins, fui pra escola e aí tive o prazer de conhecer o meu melhor amigo hoje, meu irmão Moshe Singal. Ele olhou pra mim e disse “Batata, o Batatinha”. Por que batata? Porque sou baixinho, gordinho, daí veio o apelido. Aquele desenho antigo da Turminha do Manda Chuva, no final da cozinha tinha o Batatinha. Eu era exatamente isso. Adoro ser chamado assim.
Comecei a namorar a minha esposa Karen e, antes de casar, durante três anos, morei na casa dela. Todo final de semana eu pegava minha sacolinha e ficava lá. Meu pai quis falar comigo, ligou e pediu pra falar com o Marcelo. Minha sogra atendeu e disse ”aqui não tem ninguém com esse nome”.

Marcio Luftglas: Acabei de confirmar no Face e no Youtube, 625 pessoas, um recorde nas lives do Memorial. Dessa turma, você vive o Bom Retiro intensamente durante o dia. O que o Bom Retiro influenciou para assumir sua atividade comunitária como presidente do Renascença?
Max Waintraub: Minha infância no Jardim da Luz, eu andava de velotrol. O legado que pretendo deixar pros meus filhos é o que o Rena me deu. Vou deixar para meus filhos que ajudem a levantar o Rena. A escola me deu tudo e eu apenas devolvi. Fui ex-aluno do Bom Retiro, da Rua Pará, na Bahia, São Vicente de Paula, fiz parte de toda história do Rena.
Como falaram, faltou o Pedroca, que estava na saída da escola na Rua Bandeirantes e, depois, teve uma barraquinha no Macabi… O Renascença colocou muito dentro de mim e pratico todo dia isso, não deixo sair de mim. O Bom Retiro não deixou sair de mim, todo dia tô no meu escritório

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