Live mostra o legado dos sobreviventes na visão de suas filhas

Sarita Mucinic Sarue - Especial para a TJ

A memória do Holocausto para as próximas gerações, este foi o tema da live realizada pelo Memorial do Holocausto, reunindo filhas de famílias que passaram pelos horrores Holocausto. Marcia Feldon Borger e Ida Sztamfater, filhas de Ciriel Z’L’ e Ester Sztamfater; Susy Fuerstein Horn e Pupi Elena Fuerstein Gaon, filhas de David Z’L’ e Sara Feuerstein, falaram sobre o passado e o futuro, nesse encontro online, mediado por Sarita Mucinic Sarue, após a introdução do rabino Toive Weitman.

Sarita: Quando foi que vocês descobriram que seus pais passaram pela Segunda Guerra Mundial?
Marcia: Desde as lembranças infantis, eu tinha na memória a presença do assunto do Holocausto. Por ser a primogênita, meu pai sempre conversou comigo, abriu seu coração. Na adolescência passou a ser um assunto muito mais falado, impactou minha vida, e na fase adulta, na maturidade, ao falar comigo ele exercitou a grande tradição oral judaica do le dor vador (de geração em geração). Meu pai teve a vida truncada muito jovem, teria sido um intelectual, estudioso da vida, da religião. Foi levado para a guerra, perdeu irmãos que estavam com ele na Polônia, foi o único sobrevivente.

Até os quatro anos, eu não sabia muito bem pronunciar o português, eles usavam o ídiche entre eles, a língua que aprendi em casa, só fui alfabetizada na escola, mal falava o português. Minha primeira relação com o mundo foi através da língua que eles usavam em casa…

Susy: Nasci no Chile, morei na Argentina, casada, estou há mais de 40 anos no Brasil. Começo esse tema tão delicado com uma frase do rabino David Weitman, quando ele homenageou meu pai nos 30 dias de seu falecimento: “Jamais um ser humano será capaz de imaginar o que passa no inconsciente de um sobrevivente do Holocausto”. E eu me permito acrescentar: de um sobrevivente de Auschwitz, como foi nosso pai, David Z’L’.

Toda vida meu pai fez desse trágico acontecimento uma missão de vida, de contar para que nunca mais se repita. Ele falava desde que éramos pequenas – minha irmã mais velha, Helena, nome da mãe do meu pai, que faleceu nas câmaras de gás com 42 anos. Eu levo o nome da irmãzinha de meu pai, Sirele, com seis anos foi queimada nos fornos.

Minha mãe, também sobrevivente, teve uma história totalmente oposta. Ela é uma heroína. Com 12 anos saiu de casa. Meu avô Efraim era uma pessoa bem relacionada, relativamente rico, e um deputado avisou que “vai acontecer uma coisa muito ruim na Europa no ano 1940, mas vai ser pior para vocês, judeus. Se você com a família não saírem, não vão conseguir sobreviver”. Minha mãe tinha mais dois irmãos. Imaginem os pais falarem para a filha adolescente sair de casa. “Sara, você vai trabalhar na casa das mulheres polonesas, esquece que é judia.” Ela conseguiu de Sara se tornar Maria, sem passaporte, sem documento, se salvar e chegar até a Noruega com 17 anos. Cinco anos se passaram. Quando voltou para casa, ela não sabia se o pai, a mãe estava viva. Ela viu a lista dos sobreviventes e soube que estavam em Berlim, na Alemanha… Durante cinco anos, ela não dormia as noites com medo de revelar que era judia.

Temos o privilégio de sermos filhas de sobreviventes. Me lembro, com cinco anos, meu pai tinha um número tatuado no braço. Eu perguntava para minha irmã Pupy: o que é esse número? Ela dizia, “é um número de telefone”.

Assim foi. Posso assegurar, não foi um peso, não foi um trauma, foi muito importante saber que a gente tem a obrigação de continuar esse legado para que nunca mais se repita, como meu pai falava, ele fazia questão, não importa para que público.

Ida: Para mim, especialmente, é difícil falar porque tenho o privilégio de ter minha mãe aqui, ao meu lado, e não se contenta de tanta emoção. Ela é a presença viva de tudo o que passaram durante o Holocausto. Por ser a caçula, fui um pouco poupada, minha irmã soube mais… Na pré-adolescência comecei a entender melhor a história que parecia tão longínqua, a Segunda Guerra Mundial, perseguição, nazismo, judeus. Amadureci e comecei a fazer algumas conexões com certos hábitos familiares. Shabat era sagrado, cashrut, festas religiosas judaicas, tudo era sagrado. Até aí eu não tinha grande conexão com o passado.

Minha mãe me obrigava a comer tutano, o ossinho do frango… para ficar inteligente. “Come, não pergunta.” Comia canja com pé, pescoço da galinha, nada era desperdiçado. Eu não fazia conexão com a fome. Depois vim a saber que a família dela foi abrigada por vizinhos poloneses. São tão queridos, com os quais me correspondo até hoje, fui visitá-los, conheci a casa, os bisnetos. Temos uma ligação muito forte, pois graças a eles que a nossa família pode contar a sua história. Essa família abrigou meus avós, minha mãe, minha tia, meus tios. Ficavam escondidos no estábulo, no meio do feno, das vacas. Lá eles faziam as necessidades fisiológicas, se alimentavam. Minha mãe, uma menina de 10 anos, precisava ver a luz do dia… Ela sabia que, saindo por onde havia entrado, ia dar na casa do cachorro grande e dócil. Ela entrava na casinha esperava ele acabava de comer, então comia o tutano dos ossos. Era o namorado dela, porque ele a sustentava.

Outro fato curioso: minha mãe nunca dormia sem ter um pedaço de pão no quarto. Eu não sabia porque até que, um dia, perguntei e ela disse: “Não posso dormir sabendo que não tenho pão em casa, porque eu não sei meu dia de amanhã”… Com esses detalhes comecei a perceber que a história era real, que eu deveria observar com muito mais atenção por ser a primeira geração de filhos dos sobreviventes do Holocausto.

Pupi: Existem estrelas que seu resplendor é visível na Terra mesmo que tenham sido extinguidas. Existem pessoas que seu brilho continua iluminando ao mundo, mesmo que não estejam presentes, palavras de Hanna Szenes. Esse poema me remete ao meu pai Z’L’. Seu amor, sorriso e bondade estão sempre ao nosso redor. Desde pequena ouvi suas histórias da Shoá e fui impregnada de sua vivência. E posso dizer que não me sinto traumatizada. Fui sua testemunha ao longo de sua vida. Ele prometeu aos seus companheiros que se sobrevivesse, contaria a humanidade, os sofrimentos desumanos pelo qual passaram nas garras nazistas. Seu número no braço era 160023. Manteve uma fé inquebrantável ao longo da vida, apesar que sempre discutia com Hashem… Era um Mench.

Sarita: De que maneira seus pais costumavam contar como era a vida antes do Holocausto?
Marcia: Conto através de exemplos. Eu era pequena, a gente saia de carro e meu pai cantava duas músicas. A primeira era Main Shtetl Belz, o vilarejo está em chamas. Ele cantava e contava da tragédia da destruição daquele mundo que talvez não voltasse mais; a segunda era uma música brasileira, Meu mundo caiu, uma música da Maysa. Mas ele não cantava pelo lado romântico. Quando perguntei, ele me disse que “meu mundo caiu, aquele mundo que eu cresci, que imaginei, se transformou em cinzas, eu tive que me reerguer, reinventar. O milagre foi eu ter conhecido sua mãe, conseguido, junto com ela, viver e me organizar na vida”. Ao longo dos anos, ele falava como era a vida lá, a escola, os planos que tinha de fazer a ieshivá em Varsóvia, cidade perto da dele, galgar voos mais altos, das irmãs mais velhas, da irmãzinha que foi morta logo no início da guerra, dos irmãos, um deles foi para um campo de trabalhos forçados e depois morto.

Ele tinha que agir, sair, foi quando fugiu do campo de trabalhos forçados. Ele teve uma dinâmica comigo, hoje, olhando para trás, fabulosa. Durante a infância, na minha casa não havia contos de fadas. Ele tinha uma psicologia que era começar a contar um episódio da guerra, contava uma parte e pedia para eu dar o desfecho. Quando fiz 12 anos e atingi a maioridade religiosa, meu pai falou que ia ter uma conversa muito séria comigo. “Hoje é um dia muito importante, vou retomar algumas histórias que contei e vou dar a você o desfecho verdadeiro. O que você me deu é um, o real você vai conhecer a partir de agora”. Essa foi a minha entrada na maioridade religiosa e na maturidade da vida. A partir daquele momento passei a ser outra pessoa, tive que encarar o mundo. Essa foi uma dinâmica inteligente do meu pai, ele realmente era um ser humano muito erudito, capaz de fazer a gente entender as fases da vida nos momentos adequados… Um aspecto muito importante que ele passou pra mim e pra minha irmã: a necessidade da superação, da coragem, a vida acima de tudo, da resistência. Era vivenciado no dia a dia como superar o medo. Olho para trás e digo que bom que foi assim, que ele transmitiu que é possível encontrar outros caminhos. Mesmo quando eles parecem tão difíceis…

Suzy: A família da minha mãe – meus avós que cheguei a conhecer – foi uma das poucas que sobreviveram, justamente por aceitarem o plano de se separarem. Minha mãe contava de uma avó dela que preparava panelas gigantes de comida para dar àqueles que tinham fome. Minha avó também fazia isso. Minha mãe cresceu em uma casa onde sempre via o gesto de dar para as pessoas que necessitavam. Durante a guerra, ela passou histórias incríveis com outra identidade… Arriscou a vida, muitas vezes, para conseguir dar remédios para jovens como ela que estavam trabalhando para alemães.

Minha irmã, meus filhos e sobrinhos, nós fomos duas vezes a Auschwitz, vimos a casa onde meu pai nasceu, tinha dois quartos. “A gente tinha uma casa onde havia amor, eu trocaria tudo que tenho para voltar a ver minha família”, dizia meu pai. Meu pai não sabia guiar, nem nadar, mas chegava onde queria. Minha mãe sempre falava: não olha os outros, seja feliz e tenha gratidão. Crescemos com princípios. Meu pai vinha em casa, não falava bem português, contava histórias para meu filho caçula, de quatro anos. A tradição de contar, ensinar.

Um jornalista da CNN perguntou: David, você que perdeu toda sua família, onde estava D’us naqueles minutos? Ele, brilhantemente, num segundo, falou: “a resposta é onde estavam os seres humanos que deixaram que isso acontecesse. Morreram um milhão e meio de crianças, conheci Mengele, vi os experimentos sádicos que ele fazia com gêmeos”. Para mim, o maior exemplo é que meus pais continuaram vivendo no mundo presente porém nunca esqueceram o passado.

Ida: Minha mãe contava a parte feliz da história, dizia que teve uma infância muito feliz. Subia em árvores, pegava frutas, morava em meio ao verde, estudava… Infelizmente, as tropas chegaram na cidadezinha e a família foi obrigada a sair e se esconder nos bosques. Eles conheciam muito bem a área, inclusive se juntaram à Resistência. Minhas tias lutaram, por isso conseguiram ficar todos escondidos. Minha mãe não foi, no começo, era muito jovem e ficou com meus avós escondidos nas matas. Através de informações iam mudando de um local para outro, alguns tinham tarefas como buscar comida, cuidar da sopa, da higiene. Era um paradoxo, um contraste tão grande da vida dela antes e depois da guerra, mas em nenhum momento percebi na família, nela principalmente, um momento de fraqueza. Ela me ensinou uma frase que gosto de dizer: pedras no caminho, colecione todas, um dia ainda construirá um castelo. Essa é para mim a minha mãe. Ela realmente construiu meu castelo, a gente a chama de Rainha Ester. Na casa dos meus avós a família vivia com certo conforto. Minha bisavó cozinhava para as pessoas que vinham rezar, muitas vinham para comer. Já ali eles ensinaram o que é solidariedade. Minha avó dava um pacotinho (pécale) para levarem para suas casas… As pessoas levavam o pécale para dividir com algum filho, um parente. Minha mãe não pode ver um carente que ela quer ajudar. Ela cozinha para mandar para as pessoas. Hoje agradeço todos os ensinamentos dela, tenho ela como um troféu. Ela é a mais forte da família. Quando fraquejo, ela é que me põe em pé; ela não falta para ninguém.

Pupi: Tivemos o privilégio de crescer em uma família muito especial. Meu pai, antes da Guerra, vivia numa situação modesta, a família tinha uma leiteria. Todos os rabinos iam comprar manteiga lá porque a cashrut era muito cuidada. Não conheci meus avós maternos, eles ficaram nos fornos crematórios. Meu pai nunca teve uma atitude de vingança, só contava para que soubéssemos, para conhecermos nossas raízes. Ele se recordava quando subiram nos trens, as últimas palavras das famílias “recorda que você é judeu” e para as meninas lembrarem que “vocês são idiche meidele” (meninas judias). Ele herdou de seus pais, seus avós, o que era para eles a idiche leibl (vida judaica).

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