Saudades de Merkel e judaicamente preocupado com o futuro de Macron

Caio Blinder - Especial para a TJ

O canto da sereia de Angela Merkel promete ser longo, questão de semanas ou de meses. Até o momento destas mal traçadas linhas, existem as esperadas penosas negociações para a costura de um novo governo na Alemanha, na esteira das eleições de setembro.

Angela Merkel foi um bem para a Alemanha, foi um bem para a Europa, foi um bem para o povo judeu/Israel e um bem para a humanidade. Mas tudo o que é tão bom, de fato, acaba. Após 16 anos, Angela Merkel está se aposentando. Em parte, ela fará fora no poder o que faz dentro dele. Por exemplo: ir sozinha ao supermercado.

Angela foi a estadista neste começo de século 21. Em termos mais imediatos, foi a líder do mundo livre no período em que Trump esteve na Casa Branca. Alguém precisa ser a porta-voz da sanidade, alguém precisava falar em nome dos mais preciosos valores universais. Fora isso, Angela foi a face de uma Alemanha finalmente normal, uma Alemanha reunificada que acertou suas contas com a história, em particular a Segunda Guerra Mundial.

Ela sempre foi plenamente consciente, com o seu mentor democrata-cristão Helmul Khol, que uma Alemanha forte e normal só poderia prosperar dentro do projeto europeu. Nem tudo foi perfeito no empenho de Angela, obviamente. Ela confrontou Vladimir Putin de forma as vezes ambígua, preocupada em garantir fornecimento de gás e petróleo da frente russa. Mesma coisa com a China, cada vez mais decisiva parceira comercial da locomotiva econômica alemã.

Em contrapartida a este excesso de pragmatismo, houve o pecado da ortodoxia. Angela também exagerou na frugalidade em momentos da Grande Recessão de 2008, quando deixou os gregos à míngua.

Generosidade

No entanto, para mim, Angela Merkel compensou com a generosidade que demonstrou em 2015 quando a Alemanha acolheu um milhão de refugiados, em grande maioria muçulmanos. A Alemanha dos crimes contra a humanidade na Segunda Guerra confirmou que agora era uma benfeitora da humanidade. E os estudos comprovam que a imensa maioria destes refugiados conseguiu se assimilar na sociedade alemã. Claro que nem todos concordaram dentro de casa e a generosidade de Angela reforçou uma infame extrema-direita, que ganhou espaço no Parlamento.

A Alemanha, porém, tem anticorpos e esta extrema-direita se enfraqueceu um pouco nas eleições, assim como a extrema-esquerda. No meio de campo está um pouco embolado entre a social-democracia, a democracia-cristã, os verdes e os democratas livres (estes dois últimos partidos são menores e serão os fiéis da balança na formação de governo, provavelmente sob a batuta do social-democrata Olaf Scholtz).

O ponto essencial é que o establishment alemão (da centro-esquerda para a centro-direita) segurou as pontas. A mensagem eleitoral de Scholtz era continuidade da era Angela e pragmatismo. A sua social-democracia é parceira agora da democracia-cristã na grande coalizão de governo, que, como eu disse, será provavelmente substituída por um esquema sólido, sem as aventuras populistas que marcaram os últimos anos em vários países da Europa, nos EUA, no Brasil, nas Filipinas, etc.

Mesmo sem Angela Merkel, a Alemanha ainda é uma âncora não apenas na Europa, mas no projeto ocidental de capitalismo democrático, confrontado pelos modelos da China e da Rússia. São dias incertos no baluarte deste projeto, que são os EUA. Trump partiu, mas o fantasma laranja ronda e tem o controle do Partido Republicano, hoje a serviço de causas autoritárias, basicamente obstrucionistas do governo Biden e negacionistas na pandemia. Biden de certa forma é uma decepção. Ele superestimou sua capacidade de tocar o barco.

No entanto, nesta coluna eu não quero navegar para os EUA, prefiro me concentrar na Europa. Com o Brexit, a Grã-Bretanha abandonou o projeto da União Europeia e está focada no universo anglo-saxão, reforçando seus laços com os EUA e inclusive participando da traição australiana de desistir da compra de submarinos franceses e optando por americanos em nome de uma aliança mais eficaz na região Indo-Pacífico para confrontar a crescente ameaça chinesa. A Austrália deixou a ver navios (e submarinos) a minipotência francesa e atracou de vez no porto da superpotência americana.

Núcleo duro

Claro que Emmanuel Macron está no nosso time, o time ocidental, embora à la francesa, com mania de grandeza, esteja furioso com a traição anglo-saxã. A França e a Alemanha são o núcleo duro do projeto europeu, mas ao contrário de Berlim, as aventuras populistas vicejam em Paris. E por lá as coisas tomaram um rumo bizarro.

Macron deve sua eleição em grande parte por não ser Marine Le Pen, a líder populista de extrema-direita, com o pedigree fascista e antissemita do seu pai. Muita gente votou em Macron para impedir a ascensão de Marine em 2017; o mesmo já tinha acontecido na eleição de Jacques Chirac.

E por que tudo é bizarro neste momento? Macron pode novamente enfrentar a ameaça da extrema direita nas eleições do ano que vem. Mas Marine pode ser ultrapassada pela direita por Éric Zammour.

Nos últimos anos, Marine deu uma maneirada, disposta a cativar setores mais moderados e se esforçou para apagar os resquícios fascistas da era do seu pai, aquele que entre outras coisas relativizou o Holocausto. Claro que as impressões digitais da extrema direita mundial hoje são mais complicadas, com diminuição da marca antissemita e sua substituição por islamofobia e aversão generalizada por imigrantes.

E aqui tudo fica ainda mais bizarro. A liderança da filha de um notório antissemita na extrema-direita francesa hoje é ameaçada por este Zammour, nascido há 63 anos em um subúrbio de Paris, filho de judeus argelinos. Isso mesmo, Zammour é judeu.

Escritor e jornalista, Zammour vive há um tempão de polêmicas contra o chamado politicamente correto. Ele, por exemplo, adora comparar o islamismo ao nazismo e é infatigável para alertar que mulheres de burca nas ruas francesas equivalem a um exército de ocupação.

Ao estilo Trump, que lançou sua primeira campanha eleitoral vomitando que imigrantes mexicanos eram traficantes de drogas, criminosos e estupradores, Zemmour brada que jovens imigrantes que chegam na França sem família são “ladrões, assassinos e estupradores”.

O sentimento de Zammour contra muçulmanos não é singular entre judeus argelinos, que afinal foram expulsos de suas casas, indo para a França e Israel, após a independência há 60 anos. O que é inusitado para um judeu francê é sua defesa da França de Vichy e seu líder Philippe Petáin. Zammour alega que Pétain era o “escudo que protegeu os judeus franceses, enquanto Charles de Gaulle foi a “espada” que os libertou.

Trata-se de uma mentira descarada diante da avalanche de documentos e testemunhos revelando a cumplicidade de Vichy e Pétain com os nazistas no Holocausto. Mais do que isso, Zammour considera antissemitismo algo razoável, pois as alegações de “dominação judaica” na política, finanças e cultura são “parcialmente verdadeiras”. Num debate, um jornalista disse que se poderia concluir que Zammour era “parcialmente fascista”.

As eleições não estão tão distantes assim (abril de 2022), mas muita água suja pode ainda rolar na extrema direita francesa. O fato é que Marine Le Pen teme que Zemmour seja uma opção mais palatável para conservadores tradicionais pelo mero fato de ser judeu. Que horror, que horror. TJ

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